A louca de Copacabana
Na
minha família, temos o costume de dizer que atraímos doidos — pensei enquanto
andávamos, eu e Him, em direção ao ponto do açaí que sempre tomamos ao chegar
no Rio de Janeiro. Cruzamos a Avenida Atlântica, meus cabelos não balançavam
nem com furacão caribenho, duros de areia. Lambi meus lábios, também cobertos
de areia cinzenta. Braços e barriga cimentados de sal. Eu tenho mania de levar
um pouco do mar comigo.
Chegamos
à padaria da esquina, em Copacabana.
— Pede você — disse Him ao ver que o
rapaz atrás do balcão esperava uma reação da nossa parte, e aí, vão pedir o quê?
— Não, pede você, é bom que pratica o
Português — disse a Him, que está aprendendo meu idioma e faz sopa de letras,
inventa palavras que nunca existiram, ah, como Him inventa. — Pede açaí com banana, please, darling.
Lembrei-me,
de uma hora pra outra, do rosto sem pudor da atendente loira do curso de
mergulho em Cabo Frio. Ela falava fazendo biquinhos, enrugando o queixo
pequeno; e quando eu dizia alguma coisa, a coisa mais banal, ela inclinava a
cabecinha para a direita, concordando com tudo, sim, sim, uma coelhinha,
caprichando no biquinho, como se tanta doçura a vida lhe oferecesse.
— Pediu?
Yes, thanks. See, they can understand you
— sim, a loira também o entenderia...
Him
disse que pediu “ássai com báh-naaa-na and gra-nou-lah, pour favour”. Eu
balanço a minha cabeça de lado e faço biquinho, como a loira. Isso, my love, muito bem. A
padaria é pequena e está cheia. O serviço é lento. É sexta-feira, e as noites
de sextas, em qualquer canto do Rio, parecem pegar fogo. Ah, como eu gosto do
Rio. O sotaque do carioca dá vontade de mastigar. Deveriam inventar uma goma de
mascar Carioooca, não dá vontade? A
loira faria um biquinho concordando com maciez.
Olhei
em volta, todas as mesas estavam ocupadas. Him esperava em pé ao lado do
balcão. Que semblante calmo tem ele — pensei. Um rosto de ondas calmas e
espumantes. Um sujeito entrou sem camisa e colocou o celular para carregar numa
tomada no canto da parede — padaria é lá lugar...?
Passei espremida entre uma mesa e o rapaz do celular, rocei minhas costas nas
suas costas morenas e nuas. Ele também carregava o mar no corpo. Sentei no
único banquinho desocupado, num canto sujo, ao lado do celular carregando e de
dois japoneses comendo pastel. A noite não está pra peixe, o restaurante
japonês ao lado está vazio, como bem notei ao passar, e os japoneses têm mais é
que comer pastel — pensei.
A
padaria cheia... A única coisa que não saí é esse açaí! Reparei um pouco
perplexa que, à mesa em frente a mim, estavam sentados uma mulher e um cachorro
poodle — o cachorro sentado como gente. Não era uma mulher comum. Seus olhos
verdes, cheios de exclamação e cobertos de sombra mais verde e brilhante, me
encararam. Desviei o olhar, seu rosto era de uma loucura transtornada, loucura
fixada numa pedra. Fingi não me interessar pela vida alheia — uma mentira tão
louca quanto os olhos de pedra da senhora. Estava na cara que ela era uma
grande e bela personagem — eu vivia anotando estórias e personagens de rua, sem
nunca ter escrito uma página. Tinha um livro dentro de mim, tão secreto que já
nem sabia onde o havia guardado. Alguma gavetinha da memória... Pensei na
loira, balançando a cabeça de lado, bem devagar, em câmera lenta, como se a
vida tivesse um momento slowmotion...
Se
eu olhasse bem fundo aqueles olhos, pediria à mulher: “me cura”. Com esses
olhos que são duas gaiolinhas iluminadas por pássaros verdes. Queria que os
olhos cantassem pra mim, como os pássaros loucos que cantam no meio da noite.
Em Londres, os pássaros cantam confusos em noites de invernos, em noites tão
longe do Rio, do sotaque mastigado do carioca, do açaí da padaria, do corpo
impregnado de sal. Fechei os olhos e creio que sacudi a cabeça, de outra forma
não conseguiria afastar meus pensamentos. Olhei para a mulher, de relance. Seus
olhos perdidos se alimentavam de uma energia invísivel, como um sapo que coloca
a língua pra fora e agarra um inseto no ar, em segundos.
— Pode sentar aqui, se quiser — disse
ela.
Eu
demorei a entender que falava comigo. — Oi?
— Pode sentar, minha
filha, nessa cadeira aqui vazia — respondeu como se
fôssemos íntimas.
Olhei para o poodle sentado na cadeira, respondi educadamente
que não, obrigada. Ela não me ouviu.
Levantou-se para pegar o suco. Deu um pequeno gole, fez um brinde a todos: —Que su-co! A receita é uma maravilha, cenouuura,
laranja..., que delícia, que delícia!
O garçom passou para recolher os pratos da mesa vizinha, ela
o agarrou pelo braço:
— Que delícia de
su-co, moço, que su-co tão bom.
Seus olhos explodiram, dois balões num céu verde — a loucura
não a deixaria ter um céu azul. Porque não. Agradeço-lhe novamente a gentileza,
confessando a mim mesma que adoraria sentar ao lado dela, para agarrar qualquer
trapo de loucura que ela viesse a jogar fora. Odeio o comum, quero conhecer as
pessoas loucas, fora da realidade! Ai, mas e Him? Lá vinha ele com os dois
açaís nas mãos.
— Não tem lugar pra
sentar, voltamos à praia, sentamos num banquinho — sugeriu Him.
— Ah, a senhora aqui
nos ofereceu lugar — disse
meio constrangida, ao lado do cachorro. Será que o cachorro falava? Postura de gente ele já tinha.
A mulher nos encarou e deu um riso torto. — Já falei que pode
sentar! — ajeitou os peitos moles dentro do top de lycra colado na pele branca
e sardenta.
Achei seu olhar de infinita esperança. Him olhou para mim
assim: ...
O garçom passou entre nós e serviu um prato de hambúrguer e
batatas fritas à mulher. Os olhos dela cresceram. Que olhos tão desesperados.
Eu tinha obsessão com olhos, e aqueles pareciam um órgão de alegria
carnavalesca, “não se é feliz, mas é de fazer feliz”.
— Calma, Bolacha,
eu vou dividir com você, seu guloso — falava a mulher com o poodle.
Admiro quem trata cachorro como gente, pensei. Fico
imaginando a tentação do cachorro de tratar alguns seres humanos como bichos.
— Ai, tá bom, vamos
tomar o açaí na praia, let´s go! —
tomei a decisão e deixamos a padaria.
— Mas se você quiser
sentar com a louca, a gente senta...
— Não, deixe pra
lá... Nem conheço a mulher e... Cadê a banana desse açaí?
— Look, we can seat over there.
Sentamos.
— Bateram a porcaria
da banana com o açaí — reclamei. Gosto de açaí com banana cortadinha.
— Sorry.
— Ah, não foi culpa
sua...
Tomamos o açaí em silêncio. Imaginei o silêncio brilhando no
mar, sim, ele podia resplandecer num mar de cor roxa. O silêncio mais lindo é o
da loucura, o vento batendo nas palmeiras imitando a dor das ondas. E o canto
silencioso de pássaros noturnos nas minhas manhãs cinzas. Eu luto, luto —
que onda
violenta me atrai ao que não quer fazer sentido? A vida me dá um
caldo... e se a vida me desse um caldo grande?...
— A gente podia voltar lá na padaria
e comprar um pastel. Deu uma vontade de comer pastel — sugeri.
Him
me encarou, dois pontos: — Pra
ver a louca?
— Eu, hein?, imagina, não... Deu fome de pastel, não de loucura, dei um
riso sem graça. Como as palavras soam bobas às vezes... “fome de loucura”...
— Luana,
aluada, se você quiser conhecer louco, sei lá, vai trabalhar
numa clínica de Psiquiatria.
— Vem cá, quem revelou meu apelido, Luana aluada?
— Ué, todo mundo na sua família chama você assim,
não?
Sua prima, pelo menos...
Ainda me
chamam assim, pelas minhas costas?!
— Você tá doido?
— Eu, não, doida é você — responde
Him com seu sotaque infantil.
Eu
faço cara de loira doce emburrada, faço biquinho.
— Enfim, nem estudo eu tenho pra
isso, pra nada!, como vão me aceitar?
— Você pode ser voluntária, sei lá,
começar aos poucos...
— Você acha? — pergunto. Sim, pra Him, tudo é
possível. — Pode ser — faço biquinho
pensativo e balanço minha cabeça de lado.
— Ah, está vendo,
você quer conhecer doido! Você quer voltar à padaria pra ver a louca dos olhos
grandes.
Fico desconcertada.
— Olhe aqui...
Levanto meu dedo indicador, que fica para trás no ar.
Atravesso a avenida sem olhar direito — sempre que atravesso uma rua, avenida,
penso qual seria a cor da dor nos meus olhos ao ser atropelada? Cresceriam
grandes como o da louca da padaria, gigantes, cairia eu verde no chão com a
cabeça inclinada? Como seria
a dor? I am so sorry..., diriam os
ingleses pedindo perdão pelo que não sentem... Entendo sua dor,
diria a loira, sem nada dizer, fazendo biquinho para tragédias cotidianas...
Ah, quanta bobagem eu penso!
Voltamos à padaria. Entrei com o passo agitado, Him atrás de
mim. Meu Deus, que loucura para ver a louca! Olhei ao redor, meus ombros
murcharam. A padaria vazia... Pedi um
pastel. Mas quero um pastel oco, de vento, pensei. Um pastel de vazio, de
areia, please.
— Quer? —
perguntei. Não,
Him não tem fome.
Sentamos à mesma mesa onde antes sentara a louca; sentei-me
no lugar onde o cachorro “Bolacha” — isso lá é nome! — sentava
como gente. Esperamos horassssss — penso num carioca dizendo
“horasssssss”, o s bem puxado —, esperamos ho-ras pelo pastel. Quase desisto. Os japoneses
ainda comiam pastel?
Olhei nos olhos de Him. Não, ele não era a louca dos olhos
verdes. Him me olhou em silêncio, nada falamos durante a espera. Comi o pastel
oleoso com pressa. Ah se eu fosse uma cachorra, pensei, sairia rastreando a
loucura, sem ajuda de ninguém. Uma cachorra solta, afinando meu focinho,
balançando minha cabecinha de lado, uma cachorra loira. Him não imagina o que
estou pensando, nunca vai aprender a ler meus pensamentos, nem que domine 100%
meu idioma. Encarei-o. Ele riu como se comesse vento. Quem come vento ri à toa
e coça uma lágrima no rosto. Eu sei, por instinto.
Como seria possuir uma alma canina? —
pensei, em segredo. Cachorros vão
para o céu? — perguntei um dia a minha mãe. Em vão. Cachorros como eu, voltam
para Londres com o rabo entre as pernas, fugindo do Brasil. E se eu fosse uma
cachorra louca? Seria uma puta cachorra. Au de
mim... Him alisou meu cabelo e deu uma palmadinha na minha cabeça. Seus olhos
pareciam perturbados. Him não quer ter filhos, mas cachorros... “Jez... Come devagar”, ordenou ele como
se eu fosse o quê?! Deu outra palmadinha na minha cabeça. Eu tinha o faro pra
certas coisas e devia tirar proveito disso. Him agora parecia bastante
contente, não gostava em geral das pessoas, conservava-se. Eu já havia notado
que Him tratava qualquer cão melhor do que gente.
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