sexta-feira, 12 de abril de 2013

São Dez Contos

O sequestro

— Sim, é ela mermo — disse o homem olhando para a foto. 

— Hum... Bom, o senhor leva dias observando-a, pois já deve saber o que fazer! — respondeu a mulher autoritária, vestida num trench coat. Fazia friozinho nessa época do ano, no Rio de Janeiro, e ela aproveitava pra fazer charme, com um cachecol de cashmere no pescoço. Era a herdeira de um dos homens mais ricos do Brasil. Tinha tanto dinheiro que, segundo as más línguas, se perfumava com eau de petroleum.

— A senhora tem certeza, né? — perguntou o homem franzindo a testa.

— Claro, meu filho. Não sou mulher de mudar de ideia! Você se acerte com aquele outro imbecil amigo seu, que tem carro, e me façam o trabalho direito. Agora suma da minha frente — disse e segurou-o pelo braço: — Ah, não me ligue. Deixe que entro em contato com você, amanhã, a essa mesma hora. Não me pergunte mais nada e bico ca-la-do. Vá, suma de uma vez! — disse com um suspiro, era tão rica! 

O homem saiu do carro, estacionado ao lado do Museu de Arte Moderna, usou a passarela para atravessar a larga avenida; precisava tomar um ônibus e subir o morro. A mulher retocou o batom vermelho, ligou o rádio “para espantar o silêncio” — o silêncio empestado, pensou, fungando o nariz. Aquele homem fedia como quê!, resmungou, massageando as têmporas. 

Seguiu em direção a sua cobertura no Leblon.  Ao chegar em casa — morava sozinha, divorciada, sem filhos — jogou a roupa, contaminada pelo contato com “aquele ser”, na máquina de lavar. Colocou um robe de seda, abriu um vinho e deitou-se na cama. Recolheu uns papéis, na cabeceira, com anotações sobre bobagens do seu cotidiano —anotava dicas de moda, as últimas novidades no ramo da cirurgia estética, dietas etc. Anotava também algumas ideias, quais? Na maioria das vezes lhe escapavam. 

Folheou a coluna social, já estava velha (velha para ela, diga-se: 45 anos) e esquecida pra sair nas colunas diárias. Às vezes mencionavam seu nome, quando a recompensa era nutritiva. Dinheiro cura sofrimento, dor de cotovelo..., anotou, num momento de inspiração. Por falar nisso, queria escrever um livro sobre sua vida, em forma de ficção, a vida dela era ficção? Ah, tinha muitas coisas pra contar, algum editor havia de mostrar interesse. Revelaria toda a sujeira da high society. As festas de arromba em apartamentos luxuosos, as drogas que usavam, gente rica cheira pozinho mágico! Será que havia algum livro parecido com o seu? Será? Não importa, contaria sobre o caso tórrido que mantivera com uma figura importante da política nacional, tu-do, um escândalo! 

O livro seria um best seller, sem dúvida. Reconhecia, porém, suas limitações como escritora, mas era incapaz de dominar o orgulho. Publicarei um livro, custe o que custar!, rasgou-se. Esticou a pele do rosto, passou um dos dez cremes que usava para rugas, manchas e sinais de impaciência. Pegou a revista e admirou a imagem da escritora na capa. Tomou um comprimido, apagou a luz e dormiu — era cedo, mas os últimos dias de espera haviam sido desgastantes. Mal podia aguardar as notícias do dia seguinte: 

Às duas em ponto colocou o cartão no orelhão, discou o número.

— Alguma novidade? — perguntou ela olhando de um lado pro outro, com uns óculos escuros enormes. 

— Ah, é a senhora. Como vai, majestade? — desconversou o homem. 

— Quem mais seria? E não fale comigo desse jeito, sua besta. Então, o resultado é “positivo”?

— Positivo... — disse ele, ambíguo. — A senhora tá sentada? 

— Sou eu que faço as perguntas aqui! Confirme de uma vez!

— Pois, então, a senhora sente pra num endoidar. Olha só, tava eu e o Poconé dentro do carro, quando vi a moça, a escritora essa, sair no mesmo horário, vestida de branco... Linda como quê…

— Por favor, poupe-me dos de-ta-lhes. Vá direto ao ponto, sujeito!

— Pois, então! A senhora tá sentada, né? Que de pé a senhora num vai aguentar o baque não. A moça saiu toda linda, desculpe, saiu como sempre. Abriu o portão do edifício e seguiu rumo pro lado esquerdo. Daí eu saí do carro e segui os passos dela, uns passos de pluma, o da moça... Ai... pois quando ela virou a esquina, à esquerda, eu virei também, e segundos depois... tu num vai acreditar, a moça sumiu! 

— Como assim: sumiu? Como conseguiu perdê-la de vista? Incompetente! 

— Não, a senhora num tá en-ten-deeen-do. Eu tava a um passo atrás dela; a moça virou, eu também, e depois sumiu num piscar, como um fantasma. Era uma rua super tranquila, num tinha pra onde ela correr. Caraca, fiquei meio assustado!

— Essa estória está muito mal contada. Pois o senhor espere por mim amanhã, no mesmo lugar, às onze da manhã, em pon-to. E juntos iremos ao Leme. Ah, não me traga esse amigo, o Poco-... como se chame!, eu não gosto do jeito dele. Outra coisa: vou com um carro diferente, o... — disse e bateu o telefone.

Subiu para o apartamento e deitou-se na cama, estava “exausta” — era ela de adjetivos comuns. Estava “exausta” de não ter o que fazer. Tinha de esperar mais um dia! Como conseguiria dormir depois de tudo?, pensou. Só com bolinhas de esperança, e tome-lhe duas de uma vez, com um gole de vinho. Fechou os olhos. De longe ouviu o som de uma orquestra, é o “Bolero de Ravel”, disse com dentes rangendo. Passou uns minutos escutando a canção, sem saber de onde vinha, agitando os braços no ar, como se fosse uma maestrina. O Bolero encarnava o tom repetido de passos entrando no apartamento, toc, toc, toc, sapatos velhos e pesados. Quem está aí?, disse ela num tom embriagado. Levantou-se e caiu de novo na cama, como lhe pesava a cabeça, estava realmente exausta, cansada de tu-do! O Bolero recomeçava; podia-se ouvir, em detalhe, o som de cada instrumento, o som repetido da vida. 

O céu nublado lá fora enganava o espírito de quem, como a mulher, havia perdido a noção do tempo. Já é tarde, pensou, não é tarde. Manhã fresca ou noite de coruja?, dentro do quarto ela delirava com a solidão. Vocês sabem o que é sentir medo?, pensou encolhendo-se na cama. Sentem a angústia da noite? Não, não, tudo o que penso é horrível! Revirou-se de um lado para o outro, inquieta. O Bolero continuava como uma marcha perfeita. Quem está tocando esse bo... ? 

Bateram, em seguida, repetidas vezes na porta. Ela passou a mão no rosto e levantou-se. Será o infame do Maurício, aquele perturbado?!, murmurou, arrastando as sandálias pelo chão. Que porra impaciente!, gritou ao ouvir as insistentes batidas. 

— O-que-o-se-nhor está fazendo aqui? — disse, pálida, ajeitando o robe, ao ver o homem sujo diante dela. Como deixaram o senhor subir?  

— Eu trouxe a moça ca senhora queria, num é essa? — disse ele, tranquilo, e mostrou-lhe uma mulher sonolenta, com as mãos atadas numa corda. — A senhora queria-porque- queria a moça, pois eu voltei pro lugar e fiz plantão na porta deeela. Ela voltou lá de tardezinha e dessa vez num teve como escapar. 

— O senhor drogou a pobre? — disse ela olhando para a moça sonolenta, que mal podia ficar em pé. Está louco!, quem lhe deu o endereço do meu apartamento?

— Aqui, minha senhora, eu já fiz minha parte! Agora me paga o resto da grana. A senhora que se entenda com essa bruxa. Ouvi uns rumores fortes sobre essa moça, dizem que ela tem a identidade falsa e faz magia. 

A mulher contorceu a boca, furiosa. Foi até o quarto, pegou o restante do pagamento e entregou-lhe um envelope lacrado. 

— Suma da minha vi-da! — gritou. 

O homem afastou-se dando passos coordenados para trás, como se seguisse uma valsa. O Bolero continuava reinventando-se, num ritmo desesperado. Ela desatou as mãos da escritora, sentou-a numa cadeira. A escritora olhou para ela, e riu? 

— O que você quer de mim? 

— Quero que escreva sobre minha vida, mas em forma de ficção — disse a mulher. 

— Agora entendo, sequestrou-me com esse intuito? Acha que eu posso escrever um livro... — disse a escritora, melancólica.

— Sim, um livro sobre minhas estórias. Já tenho o nome para o personagem: Maria Lúcia.
— Que nome tão... E o que mais? 

— É uma senhora da high society que contará todos os “podres” desse mundinho — disse a mulher com uma voz de adolescente; quando falava sobre o livro perdia a noção do ridículo. 

— Parece uma ideia muito original — disse a escritora. 

— Acha mesmo? — perguntou a mulher, que não entendia o sarcasmo.

— Mas como vou escrever sem inspiração? — perguntou a escritora olhando em volta.

— Ah, veja essa vista! — disse a mulher apontando para a varanda. — Como não se deixará inspirar pela natureza? E esse apartamento tem tudo: sauna, jacuzzi, piscina...

— Mas não tem muitos livros, nem cheiro de...

— Ah!, eu tenho uma coleção de biografias. Acabei de ter um i-de-ia: após o sucesso do livro, poderemos escrever minha biografia, “Lucinha, the true story”. 

A escritora levantou-se em direção à espaçosa varanda. Passou pelas finas cortinas que lhe cobriram o rosto como uma manta. Saiu debaixo do toque do vento, que se materializa para benzer-nos, e ficou de frente para o mar; “me afaste do mal”, disse baixinho para si mesma. Escutava vagamente o Bolero, e viu-se dentro de uma dança, ao lado de sete mulheres, todas amarradas a um lençol branco. Como sabemos os passos da dança?, pensou. É uma repetição, disse uma mulher morena. Lucinha, a milionária, a observava de longe, apreensiva, com a mão direita apoiada à mesa. E se ela for mesmo uma bruxa?, pensou. Eu vejo o futuro, e sabia da morte muito antes, pensou a escritora com a vibração de uma onda. A mesa da sala tremeu-se sozinha e Lucinha deu um grito de frescura, correu para a varanda.

— Está ventando muito. Entre, por favor, não quero que a vejam aqui. 
 
A escritora afastou o braço direito da mulher que lhe pousara no ombro. 

— Não, deixe-me sentir o ar fresco. E depois de uns segundos, disse: — Já reparou que o mar fala com a gente? Ele está zangado. 

Lucinha revirou os olhos, não tinha paciência para divagações sobre a vida, sobre a natureza, quando quero “viajar” tomo uma bolinha, mas às vezes me sobe um fogo!, não posso, pensou. Aliás, tinha várias ideias para um livro erótico, ah, tinha tantas ideias. Bastava aquela mulher estranha colocar tudinho num papel! Será que tinha escolhido a escritora errada? Mas ultimamente falavam tanto dessa daí nas redes sociais, eu sou antenadíssima!, pensou. Sim, outro dia viu uma entrevista com ela — que odiava a difamação que lhe causava a internet. Estava atenta aos boatos! Como uma pessoa tão high society, quer dizer, tão celebrity, na moda, como a escritora, podia ser tão estranha!, não entendia. Os escritores eram sensíveis, isso já sabia, e cheios de manias. Quando ela se tornasse uma escritora, seria superdescolada, participaria de programas de bate papo, falaria o que pensasse, com atitude! Sobre sexo, drogas, luxo. As pessoas ficariam bobinhas, tanta coisa que uma milionária pode fazer na vida!, pensou.

A escritora voltou à sala e pediu que fechasse a porta da varanda, fazia frio. Quer um chá?, perguntou a milionária tentando deixá-la à vontade. Tomaria um café, disse a outra acendendo um cigarro. Ah, ela fuma, murmurou Lucinha, com desprezo de ex-fumante. Colocou o café ao lado da escritora, que usava uma máquina de escrever. Trouxe-lhe em seguida um cinzeiro — notou que ela depositava as cinzas na mesa, naquela mesa cara e importada. Ficou uns segundos parada diante dela, sem querer interrompê-la. Deve ter começado a introdução do meu livro, pensou dando um gole no café, ajeitando o robe preto, precioso. Mas onde encontrara aquela coisa grande e “retrógrada”?, perguntou-se menos admirada com a máquina que com o som da velha palavra re-tró-gra-da. Ah, separar sílabas, para ela, era um maneirismo. 
 
A escritora parou e deteve-se um momento alisando as teclas da máquina, sentindo a granulação das letras, letrinhas de pedra, pensou com olhos recheados de lágrimas. Tomou um gole de café, o líquido rolou goela abaixo empurrando um pedaço de dor que lhe apertava a garganta. Agia como se não notasse a presença da outra mulher, que a observava, imaculada, a poucos centímentos de distância.  

Lucinha, por outro lado, sentia-se pura naquele momento, em breve se tornaria uma escritora e ensinaria ao mundo coisas da vida, do amor. Cândida e serena, a milionária dentro do roupão de seda, resplandecente o Bolero que crescia inquietante como uma manhã cheia de pássaros amarrados à linha do tempo; a cantar, que o tempo passa! passarinhos. A escritora acendeu outro cigarro, e contemplou a folha presa na máquina. Virou-se para a milionária e pediu que se sentasse em frente a ela. 

— Dê-me sua mão — disse friamente. Com o cigarro preso nos labios, agarrou-lhe a mão direita.

— Você está vendo algo? — perguntou Lucinha, tremendo-se sem controle.

— Sim, eu vejo uma vida... — respondeu a escritora, com ironia ou mistério?

— Certo... e o que nela vê?

— Uma repetição — disse a escritora, bruscamente. Uma repetição sem sentido. Uma vida encolhida, medrosa. Mas cheia de orgulho e ganância, coisas que não combinam com nossa pele. A vida sua, grandiosa como o conjunto de uma orquestra, terminará do mesmo jeito que começou. 

Lucinha, nervosa, deu um riso ondulado.

— Como assim, do mesmo jeito?

— Você nasceu do simples e morrerá do básico. Sem sofrer. Mas será fugaz, como se lhe passasse um caminhão por cima. 

A mulher tirou a mão das mãos da escritora. Será que vou morrer pobre? Quem essa mulher pensa que é?, pensou, agitada. Pois saiba que a cartomante disse que este ano encontrarei um amor. Serei muito feliz e terei muito sucesso com o livro!

— Não sairá daqui até que termine meu livro — disse Lucinha, com um ímpeto de raiva.

A escritora riu de surpresa, expulsando a fumaça da boca. 

— É mesmo? Nunca me surpreendi com as exigências desse mundo — disse e desviou-lhe o olhar. Eu queria um outro século... 

— As regras são as seguintes: escreverá um capítulo por dia. Poderá andar livremente pela casa, mas não quero que fique na varanda. Estará sempre sob a supervisão de um funcionário meu. E estará proibida de usar internet, falar ao celular. 

— Eu nunca usei essas coisas.

— Ó-ti-mo. Agora contarei minha estória. Por favor, comece a datilografar. 

A escritora deu alguns espaços na margem no papel, tac, tac. Estalou os dedos e tocou nas teclas segundos após ouvir o início do relato “sem sal” da milionária. 

“Ela tem uma vontade secreta de ser, observo. Ponto e pausa. Se eu voltasse a escrever, seria uma ameaça à minha paz? Quando escrevo sinto um vazio e não se pode entendê-lo, ou senti-lo, Deus pode. Mas o rosto de Deus, o sentimos? Vejo estrelas que voam como borboletas ao redor de Cristo, na noite iluminada e redentora, esta cidade me batizou. E o rosto de Deus, o vemos inventado? Vejo o rosto de Deus em várias partes: no mar, cheio de rugas. No voo de um pássaro, Deus é um rosto que voa. Tac tac. Eu queria o tempo precioso e preciso para investigar o mundo. Acalme-se, digo, que o hoje não é eterno. Tac tac. Sofro de uma felicidade engasgada, a vida ainda me assusta? Escrevia montando palavras como um trabalhador braçal. Existia sentido detrás do que escrevia? Não, havia proteção. O que eu dizia era pedra. Protegia-me do calor, do movimento entediante das palmeiras. Minha visão era limitada, em qualquer direção mi mirada: o mar, o barco, o sal. Escrevia copiando-me, às vezes por instinto lambia minhas feridas e me desprotegia. O mundo queria minhas angústias? A carne viva. Tac tac. Minha querida, quero lhe dizer: eu tenho uma escrita desacostumada. As palavras já se perderam. Tac tac tac. Recebo a benção da luz nutritiva, apego-me à mão de um espírito que me descreve a vida com olhos fechados; eu já descobri o mistério, ou melhor, ultrapassei o mistério com um pulo ululante, o pulo do meu último grito e espanto. Não mais faço parte desse mundo, já não o percebo. Eu o vejo assim, da janela: uma neblina; não vejo um palmo do céu, vejo a alma do alto, palmeiras imperiais e sentimentos vertiginosos. Quando observo de cima esse mundo, sinto náuseas, e daqui de baixo o céu é apagado, “cor das cores que correm”. Eu nunca fui daqui, deixe-me em paz, pensamento, deixe-me esquecer esse bolero; do outro lado, a melodia não é repetição apesar de ser infinita. Tac tac. No eterno me deito, apaziguada com as dores do mundo que já não me pertencem, repito. Sou parte da beleza do mistério, e deixo aos futuros, os de carne, a busca pelo entendimento, enquanto eu sou, de amor pleno.

A milionária inclinou-se para pegar o papel da máquina. Leu as primeiras frases, sem entender uma palavra sequer e estupefata: 

— Olhe aqui, minha querida, não foi isso o que combinamos! Eu estava falando da minha vi-da e você escreve umas bar-ba-ri-da-des que ninguém entende, nem nunca entenderá! Devem ser lindos esses pensamentos, mas de nada servem! As pessoas querem se identificar com experiências reais! Eu estava falando de uma festa onde eu conheci aquele político famoso e depois cheiramos cocaína, entramos no banheiro... esse silêncio seu me deixa nervosa! Enfim, a festa, já nem me lembro direito o que dizia... Mas você me entende? As pessoas querem ler estórias reais, não sen-sa-ções! Ah! passa-me um cigarro.

— Eu não sei como vou poder ajudá-la — disse a escritora, sem alterar-se, acendendo outro cigarro. 

— Querida, eu sei. Olhe, eu conheço tanta gente importante, com certeza vou poder ajudá-la depois a publicar algum livro seu. Conhece o Marquito do BBB? Nossa, ele é super in nesse lance de eventos e tem muitos contatos com editoras e artistas. Eu já tenho uma editora em vista, claro, sou rica. Mas nem todos ricos e famosos têm a vida ganha. Eu, por exemplo, ba-ta-lho, tenho ideias. Quero escrever meu livro e só preciso de uma ajudinha — disse de um fôlego só.    

— Acho que escolheu a pessoa errada.

— Imagina, eu pesquisei tanto. Sei que você é uma escritora madura, mas que atrai um público jovem e moderno. Seu nome está bombando nas redes sociais! Sou muito antenada com essas coisas. 

— Eu nunca quis fama ou dinheiro, minha missão era escrever. Cumpri o que devia, deixe-me ir. “As pessoas deveriam nascer prontas”.

— Como assim, você por acaso “já nasceu pronta”?

— Não, pelo contrário. Mas me teria evitado tanta dor e difamação. O seu caso é diferente, já devia saber a que veio — disse e fez uma pausa. — Escute, o Bolero ainda está tocando.  Que repetição! A vida cômoda nos deixa terrivelmente humanos, de muita carne  — disse e cobriu o rosto. 

O Bolero, suspirou Lucinha, invadida por uma angústia. A escritora descansava o olhar na leitura do que acabara de escrever. Mas parecia morta. Lucinha sentiu-se fraca, de repente. Deitou-se, no sofá, pálida, coberta por uma nuvem de medo. Vou morrer, pensou, o coração batendo no ritmo da orquestra, o Bolero cada mais agressivo, tan-tan-tannannn! Acabem essa música!, gritou, sem conseguir mexer-se. Esticou o corpo no sofá. Fez várias tentativas de levantar-se, mas o bicho do medo a açoitava. Encolheu-se, tentou mas não conseguiu chorar. A vibração angustiante da música espalhava um temor pelo corpo, acorrentando-o. Ouviu um tiro. Fechou os olhos, a boca amargou o pavor azedo, não conseguia chorar! O pânico é um medo redondo e absoluto, pensou. O medo é umas das torturas da morte, disse a escritora, em pé no canto oposto da sala. Um gavião que agarra a presa e morde-a ao poucos, arrancando-lhe a carne lentamente. Lucinha tentou gritar por socorro, em vão. Estava sozinha outra vez? Amanheceu. Abriu os olhos sem a lembrança do medo que passara na noite anterior. Olhou para o relógio e deu um pulo da cama.  

— Tenho que encontrar aquele imbecil! 

Tomou um banho rápido e saiu; desceu pelas escadas, sem paciência para esperar o elevador. Entrou no carro e dirigiu como uma louca. O homem a esperava no lugar de sempre.

— A senhora me ligou, eu tava no meio de uma parada importante. Num entendi nada, a moça desapareceu de novo? — disse ele bastante confuso. 

— Do que o senhor está falando, imbecil? — disse a mulher olhando pelo retrovisor, dirigindo.

O homem coçou a cabeça e pensou “um dia acabo com essa escrota”. Pararam em frente ao edifício da escritora. A mulher ligou o rádio, e misteriosamente havia somente uma estação disponível e esta tocava o Bolero de Ravel.

— Essa música de novo, que perseguição! — disse ela e acendeu um cigarro. 

— Num sabia que a senhora fumava — disse ele abrindo a janela. 

— Feche essa janela! E quem disse que o senhor sabe alguma coisa sobre minha vida?

Ela tremeu com o movimento da música. Sentiu uma dor no peito, como se a houvessem golpeado enquanto dormia. Quando a música começou novamente, ouviu soldados marchando numa praça ao lado. Coisa mais estranha, pensou. Estou louca! Era meio-dia. 

— Ué, olha lá, a moça outra vez! Num tô entendendo nada! — disse o homem.

— Onde?! — gritou a mulher, sobressaltada, apagando o cigarro.

— Aquela de branco, abrindo o portão — disse ele, com espanto. 

— Aquela de amarelo que acabou de sair? — disse a mulher. 
 
— Sim, aquela de branco — confirmou o homem.  

— Vou atrás dela, me aguarde aqui — saiu tão desesperada que esqueceu a bolsa e a chave no carro. Seguiu os passos da escritora, que levava um jornal dobrado e uma pasta de couro debaixo do braço. Viraram à esquerda numa rua quieta e úmida, perto da praia.

Segundos depois, a escritora sumiu de vista. Lucinha parou no meio da rua, boquiaberta. Olhou em volta e não viu uma alma perambulando. Voltou correndo para o carro. Antes de entrar, decidiu retornar e falar com o porteiro do edifício. O homem, que a esperava no carro, roubando notas gordas da sua carteira — “essa escrota anda com esse dinheiro todo, pedindo pra ser roubada” —, sentiu-se angustiado com o Bolero “que num era de acabar nunca”. 

A mulher respirou fundo, falou pelo interfone que precisava ter “uma palavrinha com o senhor”. O porteiro, ao vê-la bem vestida, abriu o portão e deixou-a entrar. “Pois não”. 

— O senhor viu a moça de calça amarela que saiu há poucos instantes? — perguntou sem dar voltas. 

— Sim, a moça escritora. Viu como ela saiu? Com um casacão grosso e o cachorro vira-lata do lado? Dizem até que o cachorro dela é alcoólatra.

A mulher sacudiu a cabeça, nervosa.

— Não, meu senhor, a moça a qual me refiro é escritora sim, mas é muito bonita e elegante. Mora nesse edifício há muito tempo. 

O porteiro coçou a barbicha. 

— Como se chama essa moça? 

— Ah, é um nome diferente — disse ela com a mão na testa, tinha uma memória fraquinha! — Um nome de flor, se não me engano. 

— De flor — repetiu ele, com ar de mistério.

— Ouvi rumores de uma tal escritora com nome de flor que mora no edifício ao lado. 

— Não, é impossível. Eu a vi sair várias vezes deste prédio, sempre no mesmo horário.

— A senhora tá trabalhando de detetive? — perguntou ele, desconfiado.

— O senhor me respeite! Mas, olhe, caso possa ajudar, darei uma boa recompensa.

— A senhora me respeite! Nesse país, metem dinheiro em tudo. Ninguém me compra, não. Me desculpe aê, mas já falei tudo o que sabia. 

Até parece que dinheiro não compra, vem bancar de honesto... pensou Lucinha, mordendo o lábio inferior. 

— Quem é essa outra escritora que mora no edifício ao lado?

— Olhe, não sei muito bem. Como disse, ouvi rumores. Alguns vizinhos têm medo dela. Outros dizem que ela não “é ela”, é um músico. Verdade que ela sempre recebe visitas de artistas, um dia Tom Jobim, outro dia Chico Buarque... 

— Tom Jobim morreu há muito tempo — disse ela, impaciente.  

— Não sei disso não... Tem que gente que se engana, minha senhora! Já vi muitos desses que deixaram esse mundo subindo e descendo por aqui. 

A milionária deu um longo suspiro. Atraía gente estranha e ignorante?, pensou. Já lhe bastava aquele imbecil fedorento que a esperava no carro! Se o dinheiro pudesse desvendar aquele mistério... Pagaria o que fosse possível. Melhor, contrataria um detetive de verdade. Aliás, por que não havia pensado nisso antes? Tonta, como demorava a raciocinar! Aceitou a recomendação do primo, e acabou com aquele matador medíocre. Sou fraca dos nervos, pensou, preciso tomar uma bolinha. Permaneceu uns minutos parada, em frente ao porteiro, que a olhava como um cachorro manso, fuçando suas partes, de desejo. Ela abraçou-se como se cobrisse certo pudor, mas nem carinho por si mesma sentia. Perdida já estava. E agora tinha de escolher outro escritor qualquer pra realizar o livro. Dizia “realizar”; tratava-se da realização de um espetáculo? A vida dela era um livro aberto num único capítulo. De longe ainda ouvia o Bolero. Que horror, gritou!
O porteiro deu de ombros:

— Deus esteja com a senhora, a cada dia, cada dia, cada dia, cadeadodia — disse e fez o sinal da cruz. 

Lucinha tremeu o queixo, sentiu a convulsão do pânico tentando dominá-la. Apoiou-se na janela da portaria, pediu um copo de água. Só tem café frio, disse o porteiro. Café vai alterar meus nervos, pensou e virou-se de súbito com o grito do porteiro, que apontava para a rua:

— Olha ali o Tom Jobim. Eu não disse?!
Ela abriu o portão e colocou a cabeça pra fora. 

— Aquele homem não é o Jobim, meu senhor! É um homem qualquer com chapéu panamá. Por favor! 

Balançou a cabeça com desprezo, nojo de tanta ignorância, sentia. Foi ao edifício ao lado, mas não encontrou o porteiro disponível. Não, a escritora mora naquele outro, tenho certeza, concluiu. Ao atravessar a rua, foi interrompida por uma marcha carnavalesca (fora de época) que tocava o Bolero ao reverso. Enxugou as mãos suadas no tecido da calça, e, por fim, conseguiu atravessar minutos depois. “Você vai morrer, simples”, dizia-lhe uma voz. A morte! Passou de raspão por uma bicicleta e quase provoca um acidente! Assustada com o desenrolar dos acontecimentos, ficou cega por uns segundos.

— E o meu carro?, gritou. O lugar onde o havia estacionado estava agora vazio. 

— Onde está aquele vagabundo? — desesperou-se. 

Encontrou no chão a chave do apartamento e uma bolsa plástica com documentos e dez reais. O imbecil pelo menos deixou um dinheiro pra pegar um táxi...?, pensou. Meu Deus, mas esse dinheiro não chegará! E os meus cartões? Nunca peguei ônibus na vida! Filho de uma...! Calma, Lucinha, toma uma bolinha... Ah, ele ficou com minha bolsa! Vou matar aquele brutamontes!
Voltou ao edifício da escritora, tocou o interfone. 

— Sou eu. 

— Posso ajudar? — perguntou o porteiro como se não a reconhecesse. 

— Acabei de ser roubada, moço — disse ela, choramingando.

O porteiro olhou-a sem um pingo de compaixão. Pediu que desse passagem aos dois oficiais atrás dela, que tentavam entrar no edifício.  

— Ah, me desculpe  — murmurou ela, com rara humildade. — Quem são esses senhores?

— Desculpe, não posso falar agora — disse o porteiro, secamente, impedindo-a de entrar. 
 
— Estamos investigando um caso — disse o homem robusto. E, olhando-a de cima a baixo, perguntou: 

— A senhora mora neste edifício?

— Não, eu estou visitando... — respondeu ela, trêmula. 

— Fale a verdade: a senhora veio visitar aquela escritora de novo — disse o porteiro.  

— A do sétimo andar? Pois, então, espere um momento, precisamos falar com a senhora — disse o homem robusto.

— Mas o que aconteceu?

— O apartamento dela foi invadido, não posso dar detalhes. 

— Mas não se trata da mesma escritora — disse ela, tentando livrar-se de mais um problema. 

— Por favor, mostre-me seus documentos — disse o homem pequeno ao lado do outro robusto. 

— Pra quê? — perguntou ela, mas não obteve resposta. Abriu a bolsa plástica e entregou-lhe a carteira de identidade.

— A senhora por acaso se chama Valdelino da Silva? — disse o homem pequeno. 
 
Ela arregalou os olhos, sem acreditar no que acontecia, aquela carteira de identidade pertencia ao amigo do homem, o tal Poconé.

— Não entendo como esse documento foi parar aí! 

— A senhora acompanhe meu colega, por favor, à delegacia — disse o homem robusto, com a respiração pesada.

O outro então a tomou pelo braço, era pequeno e ágil. Consumida pelo choque do medo, ela deixou-se ser levada, sem escândalos. O olhar do porteiro arrastou-a para fora, friamente. O homem robusto deu uma tosse seca, e pediu ao porteiro que lhe desse algumas informações sobre a famosa moradora. 

Lucinha entrou no carro da polícia, sem nada dizer. “Quero chorar, mas não consigo! Nunca consigo chorar”, soluçou como um bebê ressentindo. 

— Isso tudo é um engano, posso explicar — disse ela, apertando os olhos, quero chorar!

— Não se preocupe. A senhora vai ter a chance de explicar tudo. A delegacia é um lugar cheio de “mal entendidos”.

Balançou a cabeca, indignada. Bom, uma certeza tinha: não iria presa, nem mesmo se tivesse cometido um crime. Com os contatos que tinha e todo dinheiro, não seria julgada nem no inferno. Esclareceria tu-do. Ao chegar à delegacia, o homem pequeno explicou-lhe rapidamente, sem muito detalhe, a razão pela qual a tinham trazido até ali. Precisavam de testemunhas sobre a invasão do apartamento da escritora Y e o suposto roubo do livro X. Lucinha disse que não conhecia a escritora Y, que estava atrás da escritora Z. O delegado encostou-se na poltrona.

— A escritora Z? 

— Sim, o senhor a conhece, seguramente — disse ela. — Todo o Brasil a conhece. Até mesmo quem nunca leu um livro seu a conhece.
O homem aproximou-se da mesa e derrubou o olhar no chão empoeirado da delegacia. A pele gorda do seu rosto murchou, deixando-lhe o semblante pesado. Deu um suspiro e disse: 

— Parece que soube da sua morte ontem. E se me faz impossível viver num mundo sem a clareza e carícia das palavras...

A mulher derramou uma lágrima,

— Ela morreu?

— Eu não sei — disse o homem, confuso. — Estou repetindo uma das famosas frases dela!  

A mulher engoliu o choro, a dor do medo. Havia de dominar o pânico, onde estão minhas bolinhas sagradas?! Pediu para fazer uma ligação para o advogado, mas não tinha seu número de cor, pediu um copo com água. O delegado enxugou a testa, disse que não se preocupasse. “Conte-me qualquer coisa”. Qualquer coisa? Ela começou o depoimento. No canto oposto da sala, uma mulher de cabelo castanho, vestida de branco, datilografava o relato. “Ainda usam máquina de datilografar?”, perguntou ela baixinho ao delegado. “Sim, existem aqueles que pararam no tempo”, disse ele. Por favor, continue. 

O Bolero a perseguia, agora mentalmente. Naquele ambiente hostil, ouvia-se apenas o ruído de gente falando ao telefone e o tac tac da máquina. Lucinha descreveu o que aconteceu, na íntegra. Bem, em partes. 

 Omitiu o plano do sequestro, o trato com o imbecil, etc. Depois, levada pela repetição contagiante da música, e de forma quase obsessiva, começou a contar sobre sua vida. A tão falada festa, onde conhecera e se tornara amante do famoso político, a noite de amor que tiveram, as viagens à Suíça, ao Caribe, as fantasias, que loucura!, a vida na high society tac tac t... A moça parou de datilografar, minutos depois, e sem virar-se, perguntou ao delegado: continuo com o depoimento? Sim, minha filha, pode datilografar tudinho. Estou gostando e hoje está um tédio nublado, bom pra ouvir estória, disse o delegado. Depois se recostou na poltrona, colocou os pés na mesa, e, olhando para a mulher, disse:

— A senhora nunca pensou em escrever um livro? 

Ela apertou os olhos. Conseguia chorar, é um recomeço, pensou; dentro de si não cabia mais. 

Tac, tac, tac.

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