sábado, 20 de abril de 2013

Londres luxo

Quem será que está ligando a essa hora? Ah, só podia. Dou um longo suspiro: 

— Hello!

— Amiga, bom dia! Acordaê!

— ...

Ana? Oi, cê tá aí?
 
Está me ouvindo? — pergunto-lhe um pouco impaciente. Levanto-me da cama, o edredom sujo cai no carpete empoeirado. Fico de frente para a janela. Lá embaixo, o jardim mal cuidado do vizinho. 

Cara, a noite passada foi um essscândalo... Eu não queria sair de cima, não queria, não queria... Oi? Tem alguém aí?
Hello!! — dou um risinho. A ligação está péssima... Sair de cima de quem? Do Roberto?
— ... não queria, não queria...

Fernanda me conta todos os detalhes da vida íntima deles (todos: a corrente que enganchou no orelha dele quando tentavam uma posição X, as cócegas que ela tem em determinados lugares, etc., blá!). Observo o jardim do vizinho, a grama cheia e sem cortar, o piso de cimento   parece o pátio de uma prisão siberiana.  

Ela não para de falar... 

Oi, tá aí? Então, cara, tava tão bom que... não queria, não queria... 

Enquanto me descreve as cenas, parece tocar-se, repetindo com prazer os movimentos.

Sei, não queria repito com minha voz seca. Ah, que lindo, você consegue atingir o orgasmo dentro?pergunto tentando render assunto.

— Vários. Ué, você não?

Eu? E isso lá existe? 

OMG! 

Ficamos em silêncio. O que ela quis dizer com “oooh” ? 

Como vai a busca de trabalho? pergunta-me só por perguntar. 

Não está me dando nenhum prazer... Fernanda, você está mudando de assunto?

Não, não... Então tu num tem orgasmos, Ana? 

Tomo um gole d´agua. Fernanda pensa que é minha amiga só porque moramos juntas. Se ela soubesse como eu tenho raiva de escutar a voz cínica dela... A Fernanda é uma anta, uma anta! Uma Macabéia moderna do Sudeste.
— Eu sinto uma angústia... — desabafo, os olhos perdidos na grama do jardim.

Sinto um extremo pavor, penso e me calo. Se ela soubesse o pavor que sinto... Não é medo do sexo, é o medo do pensamento corrompido. É não poder falar naquela hora. Uma vez tentei, o João, meu marido, disse “yes, yes”, tapou minha boca, engoli a dor abafada, ele por trás, “yes, yes”. Eu pensava no Dumbo, aquele elefante deprimido, neurótico, que me deixava nostálgica nos Natais. Desde pequena sou nostálgica.

Eu tento me concentrar, sabe, Fê? — digo sem pensar.

Por que fico tão íntima das pessoas quando estou na solidão das cavernas?, pergunto-me. Olho para o céu, escuto a respiração dos pássaros de voo lento, sinto gosto de tronco de árvore amargando a boca, folhas caem no parque, tapam meu sexo...

— Eu penso em várias coisas, Fê — continuo, subitamente íntima dela. — Sonho acordada, o João corre, tapando-se envergonhado, como nos sonhos que ele tem, sonha sempre que está pelado; deve ser medo de se expor, digo com minha interpretação barata, não entendo nada de sonhos, de psicanálise, mas uma amiga aspirante a psicanalista, Ana Flávia, que dava conselhos rápidos e febris, sabia das coisas: “Freud explica, filha”... “é fogo na periquita”... 

Caaara, cê dá tanta volta assim? Tu pensa muito, esse é o teu probrema!

Ai, Fernanda é tão sexual — suspiro. Seu corpo elástico exala aquele cheiro místico de merda e água de colônia de que todo macho gosta. “Você não sabe que a mulher exala esse cheiro?”, perguntou-me certa vez um namoradinho idiota da adolescência. Cheiro? Eu cheirava a perfume francês falsificado. Fernanda tem o cheiro de quem cavalga nua, suas partes devem cheirar a suor de cavalo.

Você não entende, querida respondo depois de uns segundos em silêncio. Acabo de ver um rato no jardim do vizinho. Com toda aquela grama selvagem, só podia!

Cara, é normal pensar numas coisinhas... Mas pensar nessas coisas brochantes que tu pensa, num dá! Olhe, vou dar uma dica: pense num cara musculoso...

Ah, não gosto — interrompo, já sei o que ela vai dizer. Quando vejo um cara muito musculoso, calculo o quanto o cérebro foi esmagado pra dar espaço a tanta massa.

Ah, que preconceito! O Roberto é musculosinho...

Musculosinho... haha, não é pra tanto.

Silêncio. Será que ela se ofendeu? Sim, a Fernanda é superficial demais, com sua bunda dura de fazer inveja.

Olhe, só tem porcaria. Estou me referindo a trabalho... não tem nada que preste digo sem paciência.

Ah, por que tu num tenta trabalhar lá na night comigo? Tem um monte de brasileiro trabalhando, sabia?

Hum, não sei se dou pra isso. Dançar e rir pra turista bêbado...

— Caraca, tu também num dá pá nada, né? Té parece que tá quessa bola toda!

O que você quis dizer com isso?

Nada, nada... mas acho que na situação que tu tá, esse visto de casada que num sai nunca, vai conseguir coisa melhor, cara?

Ok, basta!, termino a conversa. “A gente se fala depois”. Desisto. É muito difícil fazer qualquer criatura entender. Ainda mais se se trata de uma anta de bunda dura como a “Fernanta". A cabeça dela é fraca, tadinha. Eu sou tão malvada. Tenho inveja dela, na verdade. Estou cá com minha ideias, bunda mole e sem trabalho quem está perdendo? “Loser, loser”, gritariam meus amiguinhos da adolescência. Ser loser num outro país é ser duas vezes loser. Espio pela porta, não quero encontrar ninguém. Um dos nossos “companheiros” saiu do quarto, há dias não o via, achei que tivesse visto seu fóssil na cama. Deixa sempre a porta entreaberta... Eu, hein, a do nosso quarto só com cadeado! Somos oito nessa casa, todos brasileiros, não dá pra confiar. Oito... Como alguém pode pensar em sexo? Pergunto sempre ao meu marido. Como alguém pode pensar e fazer alguma coisa nesse colchão sujo, cheio de ácaros? Com tantos ouvidos colados na nossa parede? A Fernanda está certa, é liberal, vai malhar e deixar a bunda dura porque a vida não é mole, não!

A casa agora está vazia. É um milagre. Respiro a solidão deprimente da casa velha se ela fosse minha, dava um bom trato. Adoro casa antiga. Mas ninguém está sozinho numa casa de séculos e bolinhas atrás... Por isso aprendi a respeitar o silêncio dos fantasmas e ratos. Vou na ponta do pé até a cozinha. Faço um chá, comecei a gostar de chá inglês. Acho chique. Tomo chá preto com leite de soja, um luxo que me permito de vez em quando. O leite normal daqui me dá náuseas. Porém é mais barato. O inverno está chegando, escondo-me no roupão encardido. A dona Catarina, brasileira e proprietária deste apartamento, não quer ninguém usando o aquecedor. “Quero mais que morram de frio!”, disse olhando as unhas vermelhas. Outro dia entrou aqui de madrugada pra saber quem era o “filadaputa que tava desrespeitando as ordes dela”. “Quem quiser morar aqui tem que tá de acordo cás ordes minhas”, gritou. A Catarina é um biscoito finíssimo. Usa peruca e maquiagem definitiva no rosto gordo e cheio de marcas de espinha. Deve ter mais de quarenta anos, calculo. Como conseguiu comprar essa casa não se sabe, é um dos mistérios que acontece na vida de imigrantes em Londres. Dizem que é filha de um pai espanhol e uma mãe baiana, vá saber! Sei que continuo no frio. As roupas nunca secam devidamente dentro dessa casa cheia de mofo.

Ah, mas se eu voltar ao Brasil... loser, loser. A Fernanda disse, enquanto fazia minhas unhas, que me acha uma pessoa deprimida. “Tu num devia ter se amarrado” — ela quer dizer casado... “Não devia, não devia”... Tanta bobagem! Não sei por que me liga o tempo todo se moramos no mesmo cafofo! Com toda essa brasileirada em Londres, ainda quer me arrumar trabalho com brasileiro. Estou velha demais pra ficar ralando num outro país. No  way, no way! Loser!, grito, olhando-me no espelho, grudando um L bem grande com os dedos polegar e indicador na testa.

Darling, I want to speak English, penso tomando meu chá. Fernanda só toma chá de boldo quando a dor de barriga ataca — culpa das dietas malucas que faz. Ah, Fernanda... digo-lhe que tem cara de drag, ela acha o máximo. O máximo é ser assim: bonita e... como é a palavra? ah, despojada, sem grilo. Mas só se é despojada quem tem cabelo liso e corpo sarado. E cara de drag, como a Fernanda. As drags são lindas com sua beleza gigantesca. Ela não se encuca. Tem o Roberto, ah, o Roberto ocupa todos seus pensamentos... Ela se preserva, pensa pouco na vida. Vive a conta-gotas. O Roberto tem lá sua graça, é “musculosinho”, moreno, cinco anos mais novo que ela. Quando brigam sempre brigam — pelas coisas corriqueiras da vida de um casal — “quem era aquela piriguete?” —, quando brigam, ela o descreve com as palavras mais profundas: “Sabe qual é o probrema dele, meninas? O probrema é que ele se acha!”. Concordo com as outras meninas que moram aqui, concordo com a indignação delas.

Ok, Ana, concentre-se na busca de trabalho digo a mim mesma. Fernanda está com a bunda, ops, com a vida feita. Que mau humor! Culpa dela, que me liga com intuito de fazer inveja, é assim que consegue chamar minha atenção: contando sua vida íntima, ela que está mais exposta que carne em açougue. Perda de tempo. O quarto dela fica ao lado do meu, ouço tudo. Mas faz questão de me contar... Eu sei de tudo, minha drag. Vocês fazem sexo até dando cambalhota. E os gritos? Qual foi a última vez que eu...?, pergunto-me. OMG. 

Ah, uma vez por mês é luxo, penso. Aliás, desde que moro aqui — há um ano —, minha vida se resume a um glamour digno de revista Caras. Moro numa casa com seis quartos, somos dois casais, não temos sala, usam-na como quarto também. Uma das nossas colegas, a Francy, é prostituta, sai linda e perfumada todas as noites. Tem uma coleção de bolsas Louis Vuitton. A outra, a Madá, é uma senhora de mais de sessenta anos, empregada doméstica, que se casou com o Floriano, coletor de lixo. Casaram-se numa manhã sombria, na cozinha da casa, único espaço onde todos nos reunimos. O Floriano deu até relaxamento nos cabelos para o grande dia. O casamento foi improvisado com alianças de plástico, todos bêbados com vodka barata. O “padre”, um russo ortodoxo, dissimulado e de bigode, que se infiltra por aqui de vez em quando. Jogou vodka nos noivos — que respingou na cabeça de todos — e brindou: “... tho dhe new couble”, trocando as pernas. Brindemos ao mais novo casal!

Meu sonho é ter uma cozinha grande, mas a “nossa” é pequena pra tanta gente. E a despensa está cheia de noddles, feijão enlatado e o pão mais barato do supermercado. Meu rosto vive cheio de espinhas. “Um luxo”, como diria um amigo gay. Luxo mesmo é não ver barata, penso, numa casa dessas, com oito pessoas... Já reparei que o Floriano não toma banho todos os dias, depois me oferece bagos de tangerina que traz da feira, aqui em Brixton. Traz galinha, macaxeira e até banana-da-terra. Argh, aquelas mãos sujas, que arrepio! Ah, baratas detestam o frio, me consolo. É um luxo.

São oito e meia da noite, o marido ainda trabalha, faz hora-extra em alguma obra do metrô, não sei direito, não quero saber direito... Minha família não pode sonhar, digo a todos que o João é technical engineer... Acham lindo quando falo inglês...

Permaneço no meu quarto, deitada no colchão cheio de bichinhos que me mordem durante o sono. Hoje eu só saí do quarto para fazer chá e ir ao banheiro. Tenho medo dos fantasmas dessa casa. Outro dia ouvi a risada de um senhor e uma mulher cantando ópera. Se a Fernanda estiver de folga hoje à noite, com certeza baterá à minha porta. Ou o Roberto — pra informar: “peguei emprestado mais uma latinha de feijão, valeu, bro. Mas não o vejo há dias... Bom, se ela me ligou pra contar de ontem à noite... Por que ainda estou pensando na “Fernanta”?

Um luxo mesmo é ter um laptop para esmiuçar o Facebook e contar a todos como London is amazing, I am having such a great time... Ha-ha, todos believe me! Ah, as redes sociais e suas máscaras... Que desespero! Estudei Arquitetura e Design, minha gente, que faço eu aqui, enrolada nesse roupão desbotado, sem rumo na vida? Casei por amor? Não penso numa resposta, penso na Fernanda que não pensa na vida, malha a bunda! A Francy me contou outro dia, “em segredo, amiga, ok?!”, que “a Fê tem um filho de sete anos no Brasil” e que o Roberto é casado largou a mulher em Ribeirão Preto com a promessa de que voltaria com uma grana.

OH MY GOD.
Não penso...

Assisto ao documentário de Edvard Munch no Youtube. Uma vontade de ver a exposição das obras dele no museu Tate Modern. Mas na “minha situação”, sem dinheiro pra comprar um pacote de bolacha... Ah, seria um verdadeiro luxo! Fernanda me chama de esnobe, às vezes prefiro passar fome e comprar um livro. Devia começar a malhar e pensar menos... Pensar engorda! Adormeço, cansada de mim mesma, da Fernanda, da Francy, da Madá, da Dri, que é super alto-astral, do Floriano sujo...

Na manhã seguinte, encontro Fernanda na cozinha. Está comendo pão e manteiga e se prepara pra “malhar”. Usa um top que levanta os seus peitos de silicone (eles me dizem: “hello!”) e uma malha bem colada nos quadris. Olho-a de cima a baixo... a Fernanda me atrai? Que ideia! Argh, que nojo! Antes que ela puxe conversa, me adianto:

Você já viu O Grito, de Munch?

O grito de quem, garota? Que monkey?

Não se faça de boba respondo com ironia.
Acordei com disposição para rir dessa anta, não tenho nada melhor a fazer mesmo. Lembro da minha amiga de infância que disputava comigo quem lia mais livros. Que engraçado... Tantos livros e agora estou aqui na merda e sem orgasmos! Olho para a “Fernanta”, que não pensa, só come: O grito... 

Nossa, tu ouviu, Aninha?

Todo mundo “ouviu” O Grito de Edvard — capricho no sotaque.

Ela arregala os olhos e mastiga com rapidez. Disse alguma coisa errada? Será que O Grito provoca-lhe um sentimento perturbador? Será? Meu Deus, esse quadro virou pop mesmo! Come com voracidade, respira fundo. Parece um hamster. Como tem cara de drag, minha Fernanda. Se não fosse sua bunda dura..., penso. Ah, sou tão amarga!

Xiii diz ela, tapando a boca com suas unhas grandes e pintadas de dourado. Cara, cala a boca... Seguinte: o Roberto vazou por uns dias... a polícia tá por perto, ele tá boladaço... O grito que cês ouviram... Ah, foi o Eduardo messsmo... o cara é um mooonstro... Seutecontá tu vai ficar de boca aberta... Cara, então todo mundo sabe do Edu?

E dispara a falar, blá...

Eduardo, o que achei que estivesse morto, penso. Agora as coisas fazem sentido, o Eduardo está enfiado no quarto dela há dias... etc. Ela enfia o último pedaço do pão na boca e faz um gesto com suas mãos grandes. 

— Aninha, tu num acredita, o material dele é assim ó: gigante...

Sim, não acredito, estou boquiaberta, penso. O grito não sai de dentro de mim, mas da casa, do quarto sujo, do jardim do vizinho...

Cara, agora que tu já sabe...vô te contar... diz ela, olhando para os lados.
Por que acha que eu preciso saber de tudo? Fecho meus olhos com desgosto.

Eu tô grávida. Mas não sei quem é o pai.

Finjo surpresa. A notícia, porém, não me impressiona nem um pouco. A carne de cavalo que o Floriano compra na feira provoca alguma reação em mim.

Você vai fazer o quê?pergunto-lhe sem interesse.

Ué, vô ter o filho, vô criar o moleque com o Roberto... Ah, é menina, tenho certeza. Tenho até nome pra ela — diz com um sorriso quase sincero.

Explica, em seguida, que um filho talvez mude a situação deles no país.

Não vão poder expulsar a gente agora... Sim, Roberto vai gostar da ideia...

Fala com praticidade, passando a língua pelos dentes, limpando a boca suja... blá blá... Coloco as minhas mãos no rosto, sinto-me um monstro deformado. Estou dentro do grito. Se eu já não dormia com os gritos abafados de sexo, como vou dormir agora com os de um recém-nascido?, pergunto-me. Fernanda se limpa derrubando farelos de pão no carpete nojento. Bebe o suco de caixa e se despede, vai malhar.

Oh how perfect!

Um luxo, essa vida é um luxo, penso, com o olhar fixo no chão. É o que digo a todos meus amigos e familiares que estão no Brasil.

Um luxo. Vivo em Londres, numa casa com seis quartos, cozinha espaçosa, recentemente fui a um casamento, tenho muitos amigos, a casa vive cheia! E o “nosso” futuro bebê se chamará Beatrice.

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