Londres luxo
Quem será que está ligando a essa
hora? Ah, só podia.
Dou um longo suspiro:
— Hello!
— Amiga, bom dia! Acordaê!
— ...
— Ana? Oi, cê tá aí?
— Está me ouvindo? — pergunto-lhe
um pouco impaciente. Levanto-me da cama, o edredom sujo cai no carpete
empoeirado. Fico de frente para a janela. Lá embaixo, o jardim mal cuidado do
vizinho.
— Cara, a noite passada foi um essscândalo... Eu não queria sair de
cima, não queria, não queria... Oi? Tem alguém aí?
Hello!! — dou um
risinho. — A ligação está
péssima... Sair de cima de quem? Do Roberto?
— ... não queria, não queria...
Fernanda me conta
todos os detalhes da vida íntima deles (todos: a corrente que enganchou no
orelha dele quando tentavam uma posição X, as cócegas que ela tem em
determinados lugares, etc., blá!). Observo o jardim do vizinho, a grama cheia e
sem cortar, o piso de cimento — parece o pátio de uma prisão siberiana.
Ela não para de
falar...
— Oi, tá aí? Então, cara, tava tão bom que...
não queria, não queria...
Enquanto me
descreve as cenas, parece tocar-se, repetindo com prazer os movimentos.
— Sei, não queria — repito com minha voz seca. Ah, que lindo,
você consegue atingir o orgasmo dentro? — pergunto tentando render assunto.
— Vários. Ué, você não?
— Eu? E isso lá existe?
— OMG!
Ficamos em
silêncio. O que ela quis dizer com “oooh” ?
— Como vai a busca de trabalho? — pergunta-me só por perguntar.
— Não está me dando nenhum prazer... Fernanda,
você está mudando de assunto?
— Não, não... Então tu num tem orgasmos, Ana?
Tomo um gole
d´agua. Fernanda pensa que é minha amiga só porque moramos juntas. Se ela
soubesse como eu tenho raiva de escutar a voz cínica dela... A Fernanda é uma
anta, uma anta! Uma Macabéia moderna do Sudeste.
— Eu sinto uma angústia... —
desabafo, os olhos perdidos na grama do jardim.
Sinto um extremo
pavor, penso e me calo. Se ela soubesse o pavor que sinto... Não é medo do
sexo, é o medo do pensamento corrompido. É não poder falar naquela hora. Uma
vez tentei, o João, meu marido, disse “yes, yes”, tapou minha boca, engoli a
dor abafada, ele por trás, “yes, yes”. Eu pensava no Dumbo, aquele elefante
deprimido, neurótico, que me deixava nostálgica nos Natais. Desde pequena sou nostálgica.
— Eu tento me concentrar, sabe, Fê? — digo sem pensar.
Por que fico tão
íntima das pessoas quando estou na solidão das cavernas?, pergunto-me. Olho
para o céu, escuto a respiração dos pássaros de voo lento, sinto gosto de
tronco de árvore amargando a boca, folhas caem no parque, tapam meu sexo...
— Eu penso em várias coisas, Fê —
continuo, subitamente íntima dela. — Sonho acordada, o João corre, tapando-se
envergonhado, como nos sonhos que ele tem, sonha sempre que está pelado; deve
ser medo de se expor, digo com minha interpretação barata, não entendo nada de
sonhos, de psicanálise, mas uma amiga aspirante a psicanalista, Ana Flávia, que
dava conselhos rápidos e febris, sabia das coisas: “Freud explica, filha”... “é
fogo na periquita”...
— Caaara, cê dá tanta volta assim? Tu pensa
muito, esse é o teu probrema!
Ai, Fernanda é tão
sexual — suspiro. Seu corpo elástico
exala aquele cheiro místico de merda e água de colônia de que todo macho gosta.
“Você não sabe que a mulher exala esse cheiro?”, perguntou-me certa vez um
namoradinho idiota da adolescência. Cheiro? Eu cheirava a perfume francês
falsificado. Fernanda tem o cheiro de quem cavalga nua, suas partes devem
cheirar a suor de cavalo.
— Você não entende, querida — respondo depois de uns segundos em silêncio.
Acabo de ver um rato no jardim do vizinho. Com toda aquela grama selvagem, só
podia!
— Cara, é normal pensar numas coisinhas... Mas
pensar nessas coisas brochantes que tu pensa, num dá! Olhe, vou dar uma dica:
pense num cara musculoso...
— Ah, não gosto — interrompo, já sei o que ela vai dizer. Quando vejo um
cara muito musculoso, calculo o quanto o cérebro foi esmagado pra dar espaço a
tanta massa.
— Ah, que preconceito! O Roberto é
musculosinho...
— Musculosinho... haha, não é pra tanto.
Silêncio. Será que
ela se ofendeu? Sim, a Fernanda é superficial demais, com sua bunda dura de
fazer inveja.
— Olhe, só tem porcaria. Estou me referindo a
trabalho... não tem nada que preste — digo sem paciência.
— Ah, por que tu num tenta trabalhar lá na night comigo? Tem um monte de brasileiro
trabalhando, sabia?
— Hum, não sei se dou pra isso. Dançar e rir
pra turista bêbado...
— Caraca, tu também num dá
pá nada, né? Té parece que tá quessa
bola toda!
— O que você quis dizer com isso?
— Nada, nada... mas acho que na situação que tu
tá, esse visto de casada que num sai nunca, vai conseguir coisa melhor, cara?
Ok, basta!,
termino a conversa. “A gente se fala depois”. Desisto. É muito difícil fazer
qualquer criatura entender. Ainda mais se se trata de uma anta de bunda dura
como a “Fernanta". A cabeça dela é fraca, tadinha. Eu sou tão malvada.
Tenho inveja dela, na verdade. Estou cá com minha ideias, bunda mole e sem
trabalho — quem está
perdendo? “Loser, loser”, gritariam meus amiguinhos da adolescência. Ser loser
num outro país é ser duas vezes loser. Espio pela porta, não quero encontrar
ninguém. Um dos nossos “companheiros” saiu do quarto, há dias não o via, achei
que tivesse visto seu fóssil na cama. Deixa sempre a porta entreaberta... Eu,
hein, a do nosso quarto só com cadeado! Somos oito nessa casa, todos
brasileiros, não dá pra confiar. Oito... Como alguém pode pensar em sexo?
Pergunto sempre ao meu marido. Como alguém pode pensar e fazer alguma coisa
nesse colchão sujo, cheio de ácaros? Com tantos ouvidos colados na nossa parede? A Fernanda está
certa, é liberal, vai malhar e deixar a bunda dura porque a vida não é mole,
não!
A casa agora está
vazia. É um milagre. Respiro a solidão deprimente da casa velha — se ela fosse minha, dava um bom trato. Adoro
casa antiga. Mas ninguém está sozinho numa casa de séculos e bolinhas atrás...
Por isso aprendi a respeitar o silêncio dos fantasmas e ratos. Vou na ponta do
pé até a cozinha. Faço um chá, comecei a gostar de chá inglês. Acho chique.
Tomo chá preto com leite de soja, um luxo que me permito de vez em quando. O
leite normal daqui me dá náuseas. Porém é mais barato. O inverno está chegando,
escondo-me no roupão encardido. A dona Catarina, brasileira e proprietária
deste apartamento, não quer ninguém usando o aquecedor. “Quero mais que morram
de frio!”, disse olhando as unhas vermelhas. Outro dia entrou aqui de madrugada
pra saber quem era o “filadaputa que tava desrespeitando as ordes dela”. “Quem quiser morar aqui tem
que tá de acordo cás ordes minhas”, gritou. A Catarina é um biscoito finíssimo.
Usa peruca e maquiagem definitiva no rosto gordo e cheio de marcas de espinha.
Deve ter mais de quarenta anos, calculo. Como conseguiu comprar essa casa não
se sabe, é um dos mistérios que acontece na vida de imigrantes em Londres.
Dizem que é filha de um pai espanhol e uma mãe baiana, vá saber! Sei que
continuo no frio. As roupas nunca secam devidamente dentro dessa casa cheia de
mofo.
Ah, mas se eu voltar ao Brasil... loser,
loser. A Fernanda disse, enquanto fazia minhas unhas, que me acha uma
pessoa deprimida. “Tu num devia ter se amarrado” — ela quer dizer casado...
“Não devia, não devia”... Tanta bobagem! Não sei por que me liga o tempo todo
se moramos no mesmo cafofo! Com toda essa brasileirada em Londres, ainda quer
me arrumar trabalho com brasileiro. Estou velha demais pra ficar ralando num
outro país. No way, no way! Loser!, grito, olhando-me no
espelho, grudando um L bem grande com os dedos polegar e indicador na testa.
Darling, I want to
speak English, penso tomando meu chá. Fernanda só toma
chá de boldo quando a dor de barriga ataca — culpa das dietas malucas que faz.
Ah, Fernanda... digo-lhe que tem cara de drag, ela acha o máximo. O máximo é
ser assim: bonita e... como é a palavra? ah, despojada, sem grilo. Mas só se é
despojada quem tem cabelo liso e corpo sarado. E cara de drag, como a Fernanda.
As drags são lindas com sua beleza gigantesca. Ela não se encuca. Tem o
Roberto, ah, o Roberto ocupa todos seus pensamentos... Ela se preserva, pensa pouco
na vida. Vive a conta-gotas. O Roberto tem lá sua graça, é “musculosinho”,
moreno, cinco anos mais novo que ela. Quando brigam — sempre brigam — pelas coisas corriqueiras da
vida de um casal — “quem era aquela piriguete?” —, quando brigam, ela o descreve
com as palavras mais profundas: “Sabe qual é o probrema dele, meninas? O probrema
é que ele se acha!”. Concordo com as outras meninas que moram aqui, concordo
com a indignação delas.
Ok, Ana,
concentre-se na busca de trabalho — digo a mim mesma. Fernanda está com a bunda, ops,
com a vida feita. Que mau humor! Culpa dela, que me liga com
intuito de fazer inveja, é assim que consegue chamar minha atenção: contando
sua vida íntima, ela que está mais exposta que carne em açougue. Perda de
tempo. O quarto dela fica
ao lado do meu, ouço tudo. Mas faz questão de me contar... Eu sei de tudo,
minha drag. Vocês fazem sexo até dando cambalhota. E os gritos? Qual foi a
última vez que eu...?, pergunto-me. OMG.
Ah, uma vez por
mês é luxo, penso. Aliás, desde que moro aqui — há um ano —, minha vida se
resume a um glamour digno de revista Caras.
Moro numa casa com seis quartos, somos dois casais, não temos sala, usam-na
como quarto também. Uma das nossas colegas, a Francy, é prostituta, sai linda e
perfumada todas as noites. Tem uma coleção de bolsas Louis Vuitton. A outra, a Madá, é uma senhora de mais de sessenta
anos, empregada doméstica, que se casou com o Floriano, coletor de lixo.
Casaram-se numa manhã sombria, na cozinha da casa, único espaço onde todos nos
reunimos. O Floriano deu até relaxamento nos cabelos para o grande dia. O
casamento foi improvisado com alianças de plástico, todos bêbados com vodka
barata. O “padre”, um russo ortodoxo, dissimulado e de bigode, que se infiltra
por aqui de vez em quando. Jogou vodka nos noivos — que respingou na cabeça de
todos — e brindou: “... tho dhe new
couble”, trocando as pernas. Brindemos ao mais novo casal!
Meu sonho é ter
uma cozinha grande, mas a “nossa” é pequena pra tanta gente. E a despensa está
cheia de noddles, feijão enlatado e o pão mais barato do supermercado. Meu
rosto vive cheio de espinhas. “Um luxo”, como diria um amigo gay. Luxo mesmo é
não ver barata, penso, numa casa dessas, com oito pessoas... Já reparei que o
Floriano não toma banho todos os dias, depois me oferece bagos de tangerina que
traz da feira, aqui em Brixton. Traz galinha, macaxeira e até banana-da-terra. Argh, aquelas mãos sujas, que arrepio!
Ah, baratas detestam o frio, me consolo. É um luxo.
São oito e meia da
noite, o marido ainda trabalha, faz hora-extra em alguma obra do metrô, não sei
direito, não quero saber direito... Minha família não pode sonhar, digo a todos
que o João é technical engineer...
Acham lindo quando falo inglês...
Permaneço no meu
quarto, deitada no colchão cheio de bichinhos que me mordem durante o sono.
Hoje eu só saí do quarto para fazer chá e ir ao banheiro. Tenho medo dos
fantasmas dessa casa. Outro dia ouvi a risada de um senhor e uma mulher
cantando ópera. Se a Fernanda estiver de folga hoje à noite, com certeza baterá
à minha porta. Ou o Roberto — pra informar: “peguei emprestado mais uma latinha
de feijão, valeu, bro”. Mas não
o vejo há dias... Bom, se ela me ligou pra contar de ontem à noite... Por que
ainda estou pensando na “Fernanta”?
Um luxo mesmo é
ter um laptop para esmiuçar o Facebook e contar a todos como London is amazing, I am having such a great
time... Ha-ha, todos believe me!
Ah, as redes sociais e suas máscaras... Que desespero! Estudei Arquitetura e
Design, minha gente, que faço eu aqui, enrolada nesse roupão desbotado, sem
rumo na vida? Casei por amor? Não penso numa resposta, penso na Fernanda que
não pensa na vida, malha a bunda! A Francy me contou outro dia, “em segredo,
amiga, ok?!”, que “a Fê tem um filho de sete anos no Brasil” e que o Roberto é
casado — largou a mulher em Ribeirão Preto com a
promessa de que voltaria com uma grana.
OH MY GOD.
Não penso...
Assisto ao
documentário de Edvard Munch no Youtube. Uma vontade de ver a exposição das
obras dele no museu Tate Modern. Mas na “minha situação”, sem dinheiro pra
comprar um pacote de bolacha... Ah, seria um verdadeiro luxo! Fernanda me chama
de esnobe, às vezes prefiro passar fome e comprar um livro. Devia começar a
malhar e pensar menos... Pensar engorda! Adormeço, cansada de mim mesma, da Fernanda,
da Francy, da Madá, da Dri, que é super alto-astral, do Floriano sujo...
Na manhã seguinte,
encontro Fernanda na cozinha. Está comendo pão e manteiga e se prepara pra
“malhar”. Usa um top que levanta os seus peitos de silicone (eles me dizem: “hello!”) e uma malha bem
colada nos quadris. Olho-a de cima a baixo... a Fernanda me atrai? Que ideia!
Argh, que nojo! Antes que ela puxe conversa, me adianto:
— Você já viu O Grito, de Munch?
— O grito de quem, garota? Que monkey?
— Não se faça de boba — respondo com ironia.
Acordei com disposição
para rir dessa anta, não tenho nada melhor a fazer mesmo. Lembro da minha amiga
de infância que disputava comigo quem lia mais livros. Que engraçado... Tantos
livros e agora estou aqui na merda e sem orgasmos! Olho para a “Fernanta”, que
não pensa, só come: —
O grito...
— Nossa, tu ouviu, Aninha?
— Todo mundo “ouviu” O Grito de Edvard — capricho no sotaque.
Ela arregala os
olhos e mastiga com rapidez. Disse alguma coisa errada? Será que O Grito
provoca-lhe um sentimento perturbador? Será? Meu Deus, esse quadro virou pop
mesmo! Come com voracidade, respira fundo. Parece um hamster. Como tem cara de
drag, minha Fernanda. Se não fosse sua bunda dura..., penso. Ah, sou tão amarga!
— Xiii — diz ela, tapando a boca com suas unhas grandes e
pintadas de dourado. —
Cara, cala a
boca... Seguinte: o Roberto vazou por uns dias... a polícia tá por perto, ele
tá boladaço... O grito que cês ouviram... Ah, foi o Eduardo messsmo... o cara é
um mooonstro... Seutecontá tu vai
ficar de boca aberta... Cara, então todo mundo sabe do Edu?
E dispara a falar,
blá...
Eduardo, o que
achei que estivesse morto, penso. Agora as coisas fazem sentido, o Eduardo está
enfiado no quarto dela há dias... etc. Ela enfia o último pedaço do pão na boca e faz um
gesto com suas mãos grandes.
— Aninha, tu num acredita, o material
dele é assim ó:
gigante...
Sim, não acredito,
estou boquiaberta, penso. O grito não sai de dentro de mim, mas da casa, do
quarto sujo, do jardim do vizinho...
— Cara, agora que tu já sabe...vô te contar... — diz ela, olhando para os lados.
Por que acha que
eu preciso saber de tudo? Fecho meus olhos com desgosto.
— Eu tô grávida. Mas não sei quem é o pai.
Finjo surpresa. A notícia, porém, não
me impressiona nem um pouco. A carne de cavalo que o Floriano compra na feira
provoca alguma reação em mim.
— Você vai fazer o quê? — pergunto-lhe sem interesse.
— Ué, vô ter o filho, vô criar o moleque com o
Roberto... Ah, é menina, tenho certeza. Tenho até nome pra ela — diz com um sorriso quase sincero.
Explica, em
seguida, que um filho talvez mude a situação deles no país.
— Não vão poder expulsar a gente agora... Sim,
Roberto vai gostar da ideia...
Fala com
praticidade, passando a língua pelos dentes, limpando a boca suja... blá blá...
Coloco as minhas mãos no rosto, sinto-me um monstro deformado. Estou dentro do
grito. Se eu já não dormia com os gritos abafados de sexo, como vou dormir
agora com os de um recém-nascido?, pergunto-me. Fernanda se limpa derrubando
farelos de pão no carpete nojento. Bebe o suco de caixa e se despede, vai
malhar.
Oh how perfect!
Um luxo, essa vida
é um luxo, penso, com o olhar fixo no chão. É o que digo a todos meus amigos e
familiares que estão no Brasil.
Um luxo. Vivo em
Londres, numa casa com seis quartos, cozinha espaçosa, recentemente fui a um
casamento, tenho muitos amigos, a casa vive cheia! E o “nosso” futuro bebê se
chamará Beatrice.
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