domingo, 5 de maio de 2013

Dezenove anos

Abro a caixa onde guardo o único diário — um caderno grosso, de capa dura — que escrevi durante a juventude. Dezenove anos depois, releio, dentre outras, aquela estória, e, impregnada de um pudor fétido que deixa minhas carnes paralisadas, rasgo o papel. Tenho vontade de mastigá-lo.
Papel me lembra dos finais de tarde no reforço escolar onde estudei, no primário. Era sempre a última a ir embora — meus pais não tinham hora para sair do trabalho — e ficava sob os cuidados da sobrinha da professora, uma menina dentuça chamada Katarina, com K. Katarina, a malvada (nunca pensei chamá-la assim quando pequena, mas lhe cai bem) me desafiava com a resma de papel amarelada:
— Duvido que você coma este papel.
Eu, que sempre sucumbi a um desafio, sem tirar os pés do sim ou não, tomava o papel da sua mão e o mastigava todinho. Katarina não sabia se rir era apropriado naquela situação. Boquiaberta, entregava-me outra folha. Eu fazia uma bolinha e comia com a saliva adocicada. Perdi a conta de quantas vezes Katarina me ofereceu papel como lanche. Ainda sinto o sabor do papel, gosto de inseto crocante. Mas inseto eu nunca comi. Só formiga, porque minha prima dizia que era bom pra vista.
Enfim, apago essa lembrança. Releio o pedaço do papel rasgado. Rio com volume — o desespero do riso às vezes me ataca, sem jeito de fazer parar, puro delírio. Ah, quantos desejos a jovem Letícia sentia, penso, com os lábios constrangidos, abrindo as narinas. Que desassossego! Neste instante, que é de um suspiro e solidão de quartinho abafado, perco o controle sobre meus pensamentos.
Enlouqueço. De dentro da chaleira, aquela chaleira na casa da vó que criava baratinhas na geladeira, de dentro da chaleira a barata cascuda sai e me fita... ai, que raiva de mim, que levei uma vida mais abafada que chaleira pegando fogo... Eu devia ter continuado apitando aquele desejo febril. Mas não, Letícia, é que a vida é assim, casa, trabalho, marido e filhos. A vida moderna é tão bonitinha, de ajeitar nossos sentimentos, de nos encher de nada, nada, do nada estamos cheios, mas é um nada tão charmoso. Roupas, celulares, Ipads, televisões com tela plana. É uma vida de querer se atirar no sofá e não pensar nela... deixe que as máquinas pensem por mim. Quando vão inventar a máquina do orgasmo? A partir de então, já não precisaremos de maridos.
Os pensamentos já se soltaram todos, desordenados. Está aí uma coisa que a vida moderna não pode dar jeito: o que fazer com a nostalgia? Penso, penso. Como é o pensamento puro?, me fiz essa pergunta sincera. Sem querer ser difícil. É que tudo que sai da minha boca me parece contaminado, é o pensamento bactéria do outro. Ah, veja isso (folheio o diário), a Letícia de dezenove anos fazia “poesia”:
“me rio, me deságuo”
Estou rindo de mim, humor sábio. O pensamento já me atropelou. Quero escrever, no diário, sobre o que sinto agora. Um desejo incontrolável. Pego uma caneta.
Antes de começar a ler, entregue-se à loucura, olhos famintos. Aviso de antemão que o conteúdo dessa estória requer uma forma de ler de olhos fechados, uma leitura pra dentro, sem pudor, palavra essa tão recatada. Sou uma cadela no cio. Ai, que me julguem os reprimidos. Eu sou bem guardada e reprimidazinha, até então era. Casei nova sem saber por que as pessoas ainda se casavam... não é por sexo, pois esse o encontramos fácil...
Quanta bobagem!
Faço uma breve pausa, as palavras não fluem do jeito que quero. Não entendo o uso que fazemos de tantas palavras pra dizer nada, quando um palavrão basta, “porra nenhuma”. Mas eu não xingo, imagina o Evandro ouvir-me dizer essas coisas sujas, imagina Ele, meu senhor marido, lendo meus pensamentos... Decido não escrever, rasgo o papel — que  vontade de sentir o gosto do papel de novo, mas não! a gente envelhece e perde a coragem de uma maneira tão patética. O gosto do papel, estou me tremendo. Tudo o que segue abaixo não foi escrito, fiquem sabendo, foi ditado. Comecei agora a falar para o vento, sozinha. Aproveito que não tem ninguém em casa, só a diarista, a Luzia, mas essa vive com os fones nos ouvidos escutando música, não escuta um raio! Fecho a janela e as cortinas, quero que as palavras fiquem guardadas no escuro. 
... Com o casamento, a vida passou para o papel, assinei (a vida?) embaixo, tudo o que fui um dia, como mulher, deixei de lado.... Que voz constrangedora, até minha voz é atada! Dou uma tapa na minha cara, liberte-se dessa voz ridícula!
... Os primeiros anos de casada me transformaram numa mulher refinada, hoje aprecio vinho, ofereço jantares e tenho um trabalho, meu Deus, me pagam e me exigem com tal força! Deixei de fumar, comecei a beber socialmente. Antes só bebia guaraná diet. As pessoas são sinceras quando bebem, e são tão puras, revelam-se em estado bruto... Ah, mas eu não bebo muito, fico com náuseas. Enfim, minha vida é um equilíbrio de salto alto. Não saio da linha, levo uma vida perfeita e bem burguesinha.  Digo assim, porque não somos ricos, mas temos uma posição confortável que me enche de remorso. É que esse país de merda é tão injusto!
... Ai, além do pouco talento que me resta, sei que deste relato não sairá nada bom. Passo muito tempo em casa, pois me recupero de uma cirurgia x — meu marido trabalha tanto e tenho tanto a dizer ... Nunca provei o sabor da loucura, você já? você quem? A lou-cura ou nos abandona. Quero aprender a ser louca e curar minhas feridas. Mas sou muito certinha, a loucura dentro de mim é um macaquinho de desejo pulando. Com uma banana logo se aquieta.
Banana...
... Noite passada senti uma febre que culminou em delírio, eu era todo grito, exacerbada! Senti uma dor lá embaixo, aquela dor de desejo reprimido. Que horror, quero vomitar, antes possa contar o que aconteceu comigo. Após dez anos de casada, acordei com o sentimento violento: o que pensava ser sexo não era nada... O sexo que experimentei nesse mundo até então não me satisfazia.
Desisto de falar sozinha. Pego o telefone e ligo para Bete, a única pessoa que pode me escutar sem chocar-se, psicanalista, cabeça aberta, não me julgaria.
— Estou louca e preciso extravasar! — desabei. — Acabo de me dar conta de que nunca tive prazer sexual com o Evandro. Hoje parece que cheguei ao limite de estar só. Eu achava que podia controlar isso de não... você sabe, de ficar sem fazer... O que estou sentindo não é pornografia barata, não... mas acordei depravada, é isso, meu bem, nem me olho no espelho, estou fervendo!
Depois do desabafo, Bete me consola:
— Casamento é uma casa familiar, entramos nos cômodos arrumadinhos, cheirosos... Não tem sala de estar pra tesão, não. É jornal, mesa, comida, roupa suja, a coisa esfria... mas quando a gente sai do conforto da casa e visita outros lares, ah, existem lares vazios, submundos, onde o desejo escapa pelas janelas. As almofadas abafam gritos desesperados e, no chão, a comichão — que palavra linda —; é isso mesmo, pegamos fogo e nos atiramos nos braços estranhos e dormimos em camas imundas.
Ah, mulher pra filosofar quando estou pinicando! Não entendi muito bem o que ela quis dizer, sou uma mulher simples, penso concentrada na minha aflição.
— O que está acontecendo comigo, Bete?
— Querida, eu sou tão depravada, conte-me tudo. Não tenha vergonha.
— Há anos não faço sexo com meu marido, já nos acostumamos... só que ontem eu tive um estalo, dormi pensando num romance “proibido” que tive. Depois encontrei um diário velho, reli umas estórias bobas. Eu o conheci no ônibus em direção à universidade.
— Hum...
— Ele tinha uma noiva, eu tinha um bom partido à minha espera... Bete, você está comendo?
— Sim, querida, mas estou escutando, pode falar. Hum...
Respiro fundo, acendo um cigarro. Hoje acordei tão estabanada que saí para comprar vinho e cigarro, e o rapaz do caixa do supermercado me desejou, com malícia de olhos lambedores: “Um bom dia fumando e bebendo...”. Fiquei envergonhada.
— Então, nos encontrávamos sempre às escondidas... — continuei sem saber o que dizer.
— Hum...
— Ontem passei o dia inteiro pensando nele, dormi e tive febre, subiu um calor pavoroso! Chorei de tanto que me apertava, as mãos entre as pernas, gozando espontaneamente... Imaginei encontrando-o na rua, numa feira, porque gosto de sujeira ao redor quando penso nessas coisas, sabe, gosto de tudo sujinho e rolar no chão...
Dou um pigarro, limpo a garganta.
— Olhe, não pense que sou uma qualquer, é que hoje não sei, estou em ebulição!
— Muito tempo em casa, sei como é — diz Bete da maneira mais prática. — Mas deixe-me interromper: qual é o problema do seu marido? é de pinto pequeno? porque se for...
— Não, imagina — ruborizo e penso: Meu Deus a que ponto cheguei, conversas métricas sobre o órgão masculino. — Sou um pouco pudica, se não tivesse preconceito com analistas, juro que não estaria tomando seu tempo, Bete... que horror!
— ... mágina, querida, adoro ouvir essas estórias. Somos todos reprimidos, né? Tendo eu algum poder, inventaria o dia oficial de falar sobre sexo. Daria início ao dia com chicotadas: “Vamos, todo mundo falando! A vizinha, o chefe, a secretária, o pedreiro: quantas vezes transam, como gozam, quais são suas fantasias, gostam disso ou daquilo”. Rá, rá... imagina trocar um pouco de açúcar por uma informação sobre orgasmos femininos com a vizinha. Digo mais, se todos falássemos sobre sexo abertamente seríamos mais unidos e menos frustrados. 
E não existiria tanta revista de mulher pelada, reflito. O Evandro que papoque o pinto dele com tanta revista, pensa que não sei onde as esconde? debaixo das toalhas! O slogan de Bete seria um lugar comum: faça sexo não faça guerra.
— Você pensa assim, querida? — digo após uma pausa. — Não sei se me sentiria confortável falando sobre isso com estranhos.
— ... mágina, seria ótimo entrar no metrô apertadinho e ver todo mundo liberando os desejos. Enfim, conte-me mais. É que perto do que fiz na vida tudo isso que me conta não é nada, você é uma menininha.
Menininha... dou um risinho sem graça.
— Bom, acontece que acordei febril, achei que todo o desejo louco da noite anterior iria passar, mas não, piorou! Acordei com a macaca... Sabe o que gostava nele? Ele narrava o sexo. Sim... dizia: “Vai, gostosa, tô enfiando todinho... ai, tô quase lá...”.
—  Hum...
— Eu gosto de narração­ — digo totalmente sem graça. O sexo silencioso é como nadar debaixo d´água, me apavoro! (...) Ah, não sei, me dá agonia, como se engolisse choro. Tinha uma amiga que chorava cada vez que dava pro noivo. Essa palavra dar não combina mais comigo — penso, toda mordida. — Então, hoje, sentindo um calor anormal — não é a menopausa ainda —, subi e me tranquei no quarto. Tirei um vibrador que tinha escondido numa caixa...
— Você tem um vibrador, que ótimo.
— Hum, não funciona lá muito bem comigo... nem cócegas faz! Nunca o usei, pra falar a verdade... quer dizer, uma vez. Só uma vez e tirei logo. Achei uma coisa sem sentido o Evandro ter comprado um, não sei... Achei melhor andar de bicicleta. Mas, voltando... para que entenda meu desespero, peguei aquele troço velho, entrei debaixo do lençol, e comecei a pensar no amorzinho. E lá fiquei repetindo as palavras, aquela narração idiota do sexo... Achei uma estupidez!
— Querida, isso é tão normal. As mulheres estão aí se revelando, veja o sucesso daquele livro — a tiragem de vendas só não é maior do que o pinto de um ex-namorado meu... Letícia, eu gosto de falar sobre essas coisas porque também me libero... é que, com os pacientes, eu não posso entrar no mesmo ritmo né? rá rá.
A Bete é tão louca (e é tão clichê que seja louca e psicanalista, podia ser louca e farmacêutica, penso). Não sei como ficamos amigas. Ah, foi através do ex-marido dela que era professor de Filosofia que estudava a linguagem, uma coisa complicadíssima. Eu abandonei o minicurso no primeiro dia, e me calei pra sempre. A linguagem uma ova! Tanta palavra que repudio cozinhando o desejo quente dentro de mim. Ai, ca-ra-ca!, é o máximo que me atrevo a dizer agora, caracóis de dor, dor mesmo.
— Ah, Bete, aquele livro eu me recuso a ler. Já sei que é pornografia.
Que pudiquita eres, mi amor. Rá rá. Conte-me mais, vá! Daqui a pouco tenho que voltar ao trabalho, tenho um paciente às duas da tarde. E quem dera se tratasse de um caso assim como o seu...
— O que quer dizer com isso? Que não vê nenhum problema no meu problema? Você não sabe como é triste estar ao lado de alguém que secou.
— Letícia, seu problema é happênis. É só o que precisa pra ser feliz. Não se ofenda comigo, continue, please!
Tenho que cortar a Bete, fala demais! Consome meu tempo, penso.
— Sim, aí me masturbei repetindo as palavras dele, “tô metendo, isso, vai, vai, ai!”. Repeti essa cena inúmeras vezes. Com o vibrador lá dentro, as pernas pra cima, parecendo uma galinha desossada... Depois fui em frente ao espelho e fiquei de quatro, dando palmadas na minha bunda, “vai, gostosa, vai...”.  Que horror! Tenho vontade de chorar!
O celular toca em seguida.
— Espere um momento, Bete, querida — é a tia do Evandro que vem do interior de Pernambuco passar umas semanas conosco. — Desculpe. Onde parei? Ah, olha, deixe pra lá! Queria mudar de assunto completamente.
— Mas eu estava gostando...
— Eu sei, mas falar muito sobre essas coisas perde a graça. Basta lhe dizer que hoje, se tivesse a oportunidade, eu sairia leiloando minha periquita, rá rá. Mas já estou velha, uma galinha velha com esses pensamentos não combina.
— Velha! ... mágina, querida, agora é que você está pronta.
— Não sei... seria mais fácil se não nos reprimíssemos tanto. Mas deixe-me dizer uma coisa, a tia do Evandro ficará aqui em casa por um tempo e eu volto a trabalhar na próxima semana.  A tia é “inxerida” demais, gosta de mexer onde não deve. Estava pensando, você tem algum cofre pra eu meter o pinto dentro  
— Que pinto?
O pinto, dói a boca só de me referir ao órgão masculino desse jeito. Essas palavras não combinam comigo, são vulgares, penso.
— O vibrador — digo. — Posso deixá-lo na sua casa?
— Hum... Por que não esconde o pinto enrolado numa roupa, atrás do armário?
— Não sei, a tia é danada, tem o faro.
— Nossa! Já sei, por que não o enterra em algum lugar?
— Credo, como se fosse uma coisa morta?!
— Ué, de certa forma é um pinto morto, nem prazer lhe proporciona.
— Onde o enterraria? Nos cemitérios dos pintos decepados?
— Ah, no seu jardim.
— Vai que o cachorro encontra e...
— E quê?! o confunde com uma salsicha? Por favor, Letícia! O cachorro não vai... Por falar em cachorro, me lembrei de um amigo que enrabou um poodle, coitado...
— Ai, Bete, não me conte esse tipo de estória! Você e seus amigos estranhos...
— Sim, pois enterre o pinto no jardim. E pronto!
— Ai, não sei — fico pensativa. — Ah, não posso, o coelhinho da Maria foi enterrado no jardim. Não e não.
— Ai, a Maria não tem mais idade pra ter outros coelhinhos. Então embrulhe o pinto num jornal, jogue ele na casa da vizinha. Ou faça um churrasco, sei lá... rá rá.
— Tomei pavor àquele pinto de plástico...
— Imagino, melhor o do seu marido na mão que um de plástico enterrado no jardim.
— Não se preocupe, querida (A Bete não presta pra dar conselho, imagino o estrago que ela deve fazer com os pacientes dela). Ah, mudando de assunto, de novo. Queria perguntar outra coisa: você tem mesmo orgasmos dentro?
— Sim...
— Sim. (Morro de inveja dessa mulher). E qual é o segredo, posso saber? — pergunto um pouco ofendida. Que ousadia, sentir orgasmos dentro, nessa idade!
— Florais de Bach, querida ­— responde com uma vozinha quase inocente, que me irrita.
— Sério? Pois eu vou experimentar, que-ri-da!
— Sim, querrrida, vire o vidrinho todo de uma vez! E catapun! Mas deixe-me perguntar — minha mente pervertida, ré ré. — Você vai tomar florais e acabar a greve de sexo com o maridinho? Vá com calma, que o Evandro não é esse cabra macho mais não!
Odeio quando a Bete se refere ao meu marido como um brutamontes nordestino. Dou um risinho, deixo em branco, e nos despedimos.
Bete tem que voltar à realidade, e eu devo aproveitar-me da falta de qualquer obrigação durante os próximos dias até a tia, o trabalho, os filhos... A tia na próxima semana, que tormento! A que ponto cheguei, nessa idade, murcha flor. Meu sexo é um carocinho. Dou um tapa na minha cara, que puta! Oh, que horror! Preciso criar coragem e marcar uma consulta com um analista.
Uma hora depois a Bete me liga — tem mania de ligar entre um paciente e outro. Coisa rápida, solta uma frase que lhe veio à cabeça e desliga:
— Olhe, estive pensando: a mulher costuma dizer de boca cheia “A periquita é minha e dou ela pra quem quiser”. Não é bem assim não rã rã rã (Bete dá aquela risada de bruxa embriagada). É assim que deve dizer, a mulher humilde, pois  a coisa tá difícil: “A periquita é minha e eu dou pra quem quiser comer ela”. Porque quem pode escolher é uma Angelina Jolie ou outra do tipo, mas nós, pobres mortais, não!
Bate o telefone. Ela quis dizer que não posso me dar ao luxo de escolher? Encaro a coisa grossa à minha frente, tenho que enterrá-lo, destruí-lo. Ah, os florais, meus floraizinhos acalmem minha menininha, estou apavorada! A Bete me disse que o amigo e um poodle... como evitar essa imagem na minha cabeça, oh, não! Antes um troço desse a um cachorro — que bruto! Dou um tapa de leve no rosto para distribuir um tom de pavor rosado na pele, estudo minhas rugas, os pezinhos de galinha... toda essa “experiência” de vida pra nada me serviu. O que tenho para contar são os anos, experiência é outra coisa, rende estória. A Bete, por exemplo, é viajadíssima, culta, fala vários idiomas... Que cansaço! Eu devaneio com um romance tolo da juventude — minha única aventura? O marido solto. A casa vazia.  A tia fofoqueira continua velha e fofoqueira, não cansa de falar da vida dos outros, aliás, vocês não cansam de falar da vida alheia, de julgar sem nem...?
Quem são vocês? Que monologo é esse?
— Quem é você? — pergunto assustada.
— Sou a narrativa, prazer, uma rata nativa de outras bandas, cheia de estória — diz uma rata gigante vestida numa minissaia, baforando um cigarro. Olha-me de cima a baixo, com desprezo e curiosidade. Solta um pigarro e me empurra para o meio do palco. De repente, as cortinas se abrem.
— Agora — continua a rata —, deixe-me apresentá-la à plateia: os ratos (homens, querida) estão loucos para que se inicie o espetáculo. Você é uma rata madura e linda. Ali na plateia tem rato de toda idade. Rato do pé lavado, rato que sabe das coisas...
— Rato do pé lavado? — pergunto-lhe mais assustada. De onde saiu essa rata ou narrativa, seja lá como se chame?!
— Sim, querida, é o ratinho novo, ou seja, o homem, cheio de energia. Dá gosto de ter um ratinho assim na cama. Não lhe deixará sentir falta. Mas têm os ratos estudados que adoram safadeza, ou os que só nos fazem vergonha... São aqueles que entram em buraco de garrafa em festas... Sabe a que tipo de rato me refiro?
— Sim — concordei pensando no Evandro. — Meu marido é assim, de fazer raiva, um rato gordo e safado. Bebe e fica com cara de menino velho.
A rata dá um risinho, passa na minha frente e solta uma baforada — fumava um cigarro de palha podre! A plateia toda masculina, os ratos cochicham ansiosos, fazendo aquele ruído de arrepiar cada pelo do corpo, ruído de rato que anda pelos escombros. A rata, que se apresentou logo depois como Pilar, falando em espanhol, dá início ao espetáculo e some detrás das cortinas. Os ratos, todos eles com cabelos brancos e barrigas salientes, me encaram. O da primeira fila à esquerda pisca para mim. O palco agora parece menor, dou-me conta de que o cenário é igual ao meu quarto! O telefone toca, em seguida, é o vibrador:
— Ahh!
Os ratos riem pueris e se masturbam. Olho-me de cima a baixo e vejo que estou apenas de calcinha. Meus seios são lindos e fartos, de comê-los. Sem saber o que fazer, os cubro com vergonha.
Pero los ratitos quieren el placer, sussura Pilar atrás de mim. Depois grita, irritada: — Ya basta de pudor, toda la vida. Quítate la braguita, vamos!
Sim, sim... tiro a calcinha. Ay, madre... Sem bastar, estou estonteante, minha carne é dura e firme, a bunda é macia como uma almofadinha — de deitar a cabeça nela e sonhar. Numa cadeira em frente à penteadeira, encontro o tal vibrador. Olho para os lados. Que vergonha, que vão pensar de mim?
Ya! No pienses tanto, anda! — Não posso pensar nada, Pilar me dá um chega pra lá.
Nua, deito-me no chão do tablado. A coisa sai com uma naturalidade perfeita, é que o sexo é uma coisa tão limpa (quem está falando?), minha nudez é uma natureza morta, e o prazer que sinto é que admirem a forma bruta do sexo. O segredo do sexo está no perfume do corpo, é um código que o instinto apurado de um animal sente. O homem não, perde-se detrás de um desejo esfumaçado, sem brilho e sem nem mesmo desejo, sexo inventado. Carniça.
Os ratos invadem o palco e me rodeiam, querem devorar a víbora que entra pelas minhas entranhas. Comem-na inteira, como urubus gordos. Eu dou uma cusparada de prazer, sinto a comichão... uma vontade de me dissolver ali no palco, me diluir, sim, virar um líquido de gozo, jamais retornar à matéria. Ali entre os ratos sinto uma vontade de consumir o veneno deles, e morrer, seca. Ratinhos comendo-me os lábios doces, de açúcar...
— Ya está, interrompe Pilar, que me observava o tempo todo de cima do seus saltos altíssimos. Pisca os olhos várias vezes. Sai chutando os ratos que se aproximam de mim, os remanescentes, os que  tentam subir ao palco. Parece que se procriam! — Y tu, vete a la mierda! — diz olhando para mim, com desprezo.
— O que está acontecendo? — pergunto. — É um sonho?
No lo sé, ya me dirás tu — responde Pilar, mais calma, com uma baforada.  — Yo creo que no, es que es así, la vida es así, coño! Nosotros ratos tenemos el alma podrido, y qué mas da! Nos juntamos a la mierda, a la carne con sangre... Oye, así como te lo intentaron comer igual te hace la vida, te das cuenta? Ay, la vida es una representación... me dan miedo los hombres que no se juntan a la mierda de ese corto espetáculo... Y fíjate que la mierda es lo más sano que hay en la naturaleza.
De repente a rata Pilar desaparece, e me vejo sozinha novamente no palco, e o cenário agora é uma cozinha bem equipada, uma cozinha que qualquer um desses chefs celebridades sonharia em ter. Estou de costas, preparando uma massa de pão. Pego a massa e enfio meus dedos na coisa fria. Estico-a com um rolo, estou suando! Faz um calor horrível! Quando me viro, vejo luzes e câmeras. Estou no estúdio de um programa de culinária.
— E hoje a receita é um pão recheado com salsicha, uma delícia, caros telespectadores — digo meio sem graça em frente à câmera. Não sigo nenhum script, tudo sai naturalmente. Até mesmo o sorriso.
Quando menos espero, o timbre da porta toca e levo um susto. Tiro do bolso do avental o vibrador de plástico. Essa coisa ainda rola solta! Alguém me ajude, o que vou fazer com isso?! — penso apavorada. A equipe do programa me olha com frieza. A tia entra na cozinha e, ao vê-la aproximar-se, enrolo o vibrador na massa do pão e enxugo o suor na testa. Viro-me novamente para a câmera e digo:
— Hoje temos visita, a convidada especial vai experimentar a receita e dar a nota.
Coloco o pão no forno. A senhora senta-se no banco e aguarda. “Não vejo a hora de provar”, diz e me provoca certo prazer. “Vamos ao intervalo”, digo. Faço de tudo para que a tia se esqueça do pão, não quer tomar um banho?, deve estar cansada, sugiro. Voltamos ao programa, e enquadram o pão retirado do forno, ainda bastante quente. A tia se oferece para cortá-lo. Estou suando como uma porca. Fecho os olhos ao vê-la mastigar o pão com o plástico derretido do vibrador. O timbre da companhia toca outra vez, estridente, e tenho um sobressalto. A tia também, e engole um pedaço da fatia gorda sem mastigar. “Minha filha, você enfiou uma salsichona inteira nesse pão?!”, pergunta-me engasgada. O timbre toca novamente. Entro em pânico, não pode ser, é o Evandro!
— Dona Letícia... dona Letícia... A senhora está gemendo, don...
Dou um grito, sempre acordo assustada quando alguém me desperta. Luzia tenta entregar-me o telefone. Sento-me no sofá e tento esconder em vão o “pinto” que segurava com duas mãos, pressionando-o contra meus peitos. Dou uma tossidinha, mal humorada, ao ver que ela está olhando para o troço em cima de mim.
— Que aconteceu? Não me olhe desse jeito!
— Telefone pra senhora, é a dona Bete.
— Obrigada. Ah, feche a porta, por favor — digo e espero até que ela saia do quarto, estou desconfiadíssima. Vou ter que despedir a Luzia. — Oi, Bete...
— Então, querida, já está mais calma?
— Não sei... tive uns sonhos estranhos, acho que acabei de sonhar com você.
— Foi mesmo? Pois é uma conexão. Pensei numas cositas. Letícia, você é uma lady doll.
— Quê?!
— Você é uma bonequinha, dentro de uma casinha de bonecas. Você é lady, meu amor, não vai conseguir trair seu marido, nem a aconselho... Ele é um homem bom, não é?
— Eu, hein, Bete, esperava tudo de você, menos isso.
— Minha querida, lembre-se do que disse antes... Não é fácil, digo por experiência própria. O mercado está saturadíssimo e hoje em dia só tem carne de terceira... entende? Viva suas fantasias... ou então deixe a casinha de bonecas... Ou então, já sei! Letícia, vamos rezar, começar a frequentar um grupo de meditação... não sei, acho que a oração nos trará esperança e nos acalmará.
Concordei amarga, a oração me organizaria por dentro. No meu caso, talvez acontecesse um milagre. Ainda segurava aquele troço sujo, que horas são? Daqui a pouco o Evandro chega, tenho que esconder essa coisa!
— Já sei onde vou esconder o troço — digo determinada, mas já sem saber qual era o sentido de achar um lugar secreto. Mas queria a coisa fora do meu quarto!
— Onde? — pergunta Bete, bocejando.
— ...
— Ah, que curioso, Letícia. Na casa de bonecas, o casal está sempre sorrindo, a sala sempre arrumada, a mesa posta; e, como não se cozinha de verdade — pois nada é real —, é normal que numa casa de bonecas o sexo seja plástico e...
Lá vem ela com seus devaneios! Concordei com tudo, sim, sim, sim... Coloquei o telefone na mesa e deixei ela falar o quanto quisesse. Não era a primeira vez que deixava a Bete falando sozinha.



Nenhum comentário:

Postar um comentário