O professor sem teoria para o sexo
“Só
assisto essa aula porque o professor é um gato”,
lembrei das palavras de uma colega espevitada que tínhamos na universidade.
Vivia solta pelos corredores do campus de letras, “doida pra dar” para os
professores.
Rárá.
— De que está rindo?
Ah, essa pergunta é do homem do outro lado da
linha, que costuma telefonar depois das classes que leciona nas quartas-feiras.
É o professor de Teoria Literária. Barthes
nunca me excitou tanto.
— Ah, nada, nada... Tô rindo de uma bobagem... —
digo concentrada num prazer
saboroso. Ele é tímido, penso, me liga e fica sem saber o que dizer.
— Quantos anos você tem mesmo, menina?
— Dezenove — respondo mordendo os lábios, o gato em
cima de mim, me azunhando. Que tola, como se ele pudesse me ver! A sensualidade
numa adolescente é tão espatifada!
No final da última aula, esperei que todos
saíssem da sala e nos deixassem sozinhos. Ousei o passo mais sensual até a
mesa, onde o professor, sentado na cadeira, arrumava os papéis, distraído ou
fingindo. Queria encostar-me nele, roçar meus seios...
Inclinei-me em frente a
ele, apoiando-me na mesa. Sem mais nem menos entrou uma vontade de espirrar, e
quase cuspo seu rosto.
— Tome aqui um lenço. Está tomando
remédio pra gripe? — disse ele,
distraído.
— Sim,
me dá um cigarro? — disse e saímos da sala.
Ai, que ridículo, me arrepio
todinha só de me lembrar daquela cena patética. Enrolo o dedo no longo fio do
telefone, sentindo sua respiração pesada. Escuto seu silêncio.
— O que você está fazendo agora? — perguntou-me.
— Você quer saber mesmo? —
aprendi a falar como uma gata no cio.
— Olhe, não foi essa uma pergunta erótica; quero saber se está vendo algo
interessante na TV, folheando alguma revista...
— Sei... estou louca, sinto a dor...
Sabe a dor...?!
— Adorno, leia Adorno —
interrompeu-me da maneira mais estúpida.
Dei
um riso, constrangida.
— A-ha! Seu bobo! Professores de teoria
não conseguem mesmo ser engraçados, estão contaminados de mistério. Estou
sentindo uma dor sufocante, não adianta me tocar, não passa... Posso ir na sua
casa?
Rêrêrê, aquela risadinha de homem inteligente
e bobo.
Desconversou, como imaginava. Quarentão mais
frouxo! Eu queria me jogar em cima dele, me livrar daquela dor, ai, ai...
Desligou, “tinha que escrever uma matéria” — além de professor era jornalista
freelance. Afastei o gato de mim, apaguei a luz, tirei a calcinha — se ele soubesse que estava só de
calcinha o tempo todo... Alisei minha pele, o pelo do gato... E imaginei que os
lábios finos do professor eram uma flor de leite, aquela pelezinha do leite,
tão pálido ele era; seus lábios sugavam meus seios... depois me amaciavam a pele com beijos lentos, ah,
Barthes, Barthes, o autor está morto, mas não o autor desse crime. A língua
dele, flor, pétala aveludada me lambia toda até o dedão do pé. Lambida prazerosa
de gato. Ai, que dor, que dor. Ah, como seria o professor naquela hora —
seria gentil como um pombo
branquíssimo a me beliscar a barriga, a carne farta da minha bunda? Sim, cândido, a princípio. Em seguida,
reagiria como um bicho. Faminto, comeria minha ostra; depois me colocaria de
quatro e me seguraria com força... O professor é brutal...
Peguei o diário. Queria escrever, mas mordi o
travesseiro, me apertei inteira. Em vez de sentir alívio, sentia raiva, meu
prazer se consumia em poucos minutos. E acabou-se! Respirei como se tivesse
sofrido um quase ataque do coração.
Peguei um livro de Gide (o professor me orienta a leitura) e li umas páginas,
(...“vos odeio!”), ai, essa leitura me deixa brocha e minhas partes aos poucos
congelam. Certa vez, uma amiga “experiente” colocou gelo nas partes íntimas
para acalmar a falta...
Ai, ele é tremendo!, gritei me debatendo na
cama. Vejo-o de novo em cima de mim. Queria ter uma imaginação muito mais
poderosa. “Deus ajude que meu ego e super ego
não virem gelatina, senão eu corro o risco de sair por aí igual uma cadela no
cio”, lembrei-me de novo da colega saltitante da universidade —
usava calcinha
vermelha e saia transparente, era puro sexo, nascida pro pecado, meu caro
Nelson Rodrigues, toda mulher nasceu pra isso mesmo?
“Querido diário”, quem disse
que escrever resolve algum problema?! Será que o professor também imaginava as mesmas coisas? E se eu agora entrasse na sua casa?
A cena seria:
Pedro Henrique toma um vinho, folheia um
suplemento cultural. Lê sobre uma exposição dos quadros..., no museu... Vanguarda.
Fechei o diário e adormeci. Os dias seguintes
é que foram!
Passaram-se três dias, não conseguia me
concentrar com nada. Coloquei Dostoiévski e Camus contra a parede: me deixem em
paz! Tanta leitura pra nada! Estava cansada do joguinho de um homem maduro,
chega, estou abafada! “Não quero saber da semiótica, mas da sua minhoquinha,
professor”, dava vontade de dizer isso na cara dele! Ai, eu lá quero saber de
linguística, literatura? Estou pegando
fogo.
Tranquei-me no banheiro e fiquei folheando as
revistas de mulher pelada do irmão. Quanto peito lindo, pensei, morro de inveja
dessas mulheres. Não deixo de me excitar com elas também, todas atrizes de
novela, sexo é pura dramaturgia. E sempre será tabu, senão escancara e perde a
graça. E mulher que não finge pelo menos certo tipo de pudor não é mulher, “é
uma égua mesmo”, como diriam os machos em terras de “coroné”.
Folheando páginas eróticas,
eu.
Ai, algumas mulheres são tão peludas... Será
que homem gosta de um tapetinho...? Se
eles imaginassem como depilação acaba com o humor da mulher, depilariam a barba
com cera quente. Sei pouco sobre sexo... ah, não, não sou virgem, não... Caso
fosse: o professor me colocaria na cama como uma menininha pura e vestida numa
camisola branca, meteria a mão por debaixo do fino tecido, eu lhe diria: “stop!
só por trás”.
Ai, Letícia, tenham piedade de toda sujeira
que passa pela sua cabeça! Se minha mãe lesse tais pensamentos, derramaria uma
lágrima de pudor. Aliás, se alguém lesse esse diário, estaria frita! Ai, ai,
olho pro céu, estrelinha, estrelinha, quem não quer comer una lolita enamorada, por Dios!
Quando me tornar adulta — ainda não sou, psiu! —,
quando me tornar adulta e tiver um marido, vou virar santa, santinha.
Tenho tendência ao sexo apático, que é pura imaginação. Quem estiver lendo isso
nem pense que sou uma depravada, invento mais que tudo... e não dou pra
qualquer um não, tem que ser pra alguém com conteúdo...
Tremendo o conteúdo do professor, o imagino
assim: “ó”.
Folheio as páginas onde a atriz da capa
mostra seu “talento”. É uma bela atriz, não se pode negar. Sinto algum desejo
por mulheres? Não, não, mas me excito com
mulheres nuas. Sofro, porém, desejo mais forte com homens femininos. Joguei a
revista de novo na gaveta, peguei meu diário. Ao sair do banheiro, o telefone.
— Oi, é você?! — tentei
não denunciar o tesão pavoroso que sinto ao ouvir sua voz.
É ele, o professor.
— Você está ocupada?
Ah, se ele soubesse com que tipo de atividade
venho me ocupando.
— Não, imagina. Posso ir na sua casa? — perguntei sem ai, ai, ai. Quando quero algo, não dou voltas. O impulso
na juventude é tão singelo, na velhice vira cara de pau.
O homem emudeceu; fechou os olhos? — sei que ele ri de olhos fechados. Sentia um
gracioso espanto, sou eu tão nova e natural?
— Claro, vem... Anote o endereço:
Endereço anotado com mãos tamborilantes.
Mandei um beijinho, “té já”, o corpo irrigando-se com um líquido quente,
atiçando minhas partes. Corri para o quarto, abri o guarda-roupa como se uma
fera me possuísse, tirei um punhado de roupas de dentro das gavetas, fiquei
nua, me olhei no espelho me comendo, ai, que ca-lor! Coloquei um top, tirei uma
blusa, sutiã ou sem sutiã?, meus
peitinhos sem vida, sutiã e enchimento, tira e bota, nada prestava! Antes de
sair, perfumei a vagina, lábios da vagina perfumados como duas pétalas de rosa,
e passei um óleo poderoso no rego da bunda. Esse lugar apertado e quentinho
fede muito.
Saí de casa louca pra me livrar da dor. Estou
apaixonada por aquele homem. Que ele me livre da dor, a ideia do sexo me
violenta, e sangro de um prazer tão natural, é de bicho montado no outro,
trepando, no meio da rua; é tão natural que me entregasse a ele, porque eu já o
desejava há tanto tempo...
Querido
professor,,,
tento
registrar esse exato minuto para não esquecê-lo. sou tão romântica e puta ao
mesmo tempo!
Querido
professor,
eu
já fazia amor com seus gestos: o jeito como passa a mão no cabelo; quando
coloca a mão no queixo pensativo e vulnerável diante de mim,
eu
sangrava.
agora
me livre da dor, pois o sexo é um suculento pedaço de carne a ser devorado,
depois acaba, e fica o vazio de querer outro tipo de fome.
Rasguei o papel, enfiei o diário na bolsa, e
saí correndo. Caminhei violenta pela rua em direção ao ponto de ônibus; sem
querer pensar em nada sujo, abri um parêntese mentalmente:
(
Meu amor, sou uma romanticazinha, guardo
todos os versos que você anota em papel solto, leio todos os livros que você
recomenda, são tão! Leio sempre antes da sua aula pra render assunto; me sento
na poltrona e leio... no meio da tarde sinto a pressão baixar, o vento entra
pela janela, sinto aquele frio impossível em dezembro, imagina! os lábios ficam
até ressecados, passo mal de amor e sede, até que acordo pra realidade do seu
mundo, as quartas-feiras...
Não tive tempo de fechar o parêntese. Ele
abriu a porta do apartamento, um espaço decorado com móveis antigos, objetos de
arte, livros e mais livros no chão e nas estantes. Entrei sem o furor que
planejara durante o caminho, no fundo sou tímida. Entrei: meus olhos
arrastando-se pelo chão até que chegassem ao sofá e passassem a admirar o
tapete branco. Só o encarei quando ele levantou meu queixo e beijou-me a testa.
— Quer vinho?
Trouxe-me uma taça, sentou-se ao meu lado e
deu-me um presente. Rasguei o papel, ansiosa, era um livro.
— Já leu K.?
— Não li esse livro.
Dentro dele, uma dedicatória suave, como se
quase não tivesse tocado a ponta da caneta no papel. As mãos suas me tocariam
assim, sem deixar marcas:
À
doce Letícia, que tem olhos de amar
Olhos
que prometem felicidade...
Apertei o livro contra meu peito, dei um gole
gordo no vinho, queria me embriagar, a dor voltara, eu tinha o professor diante
de mim, estava sem palavras, ai de mim, ai do discurso amoroso... A paixão é
absoluta; o amor, fragmento. Ah, suspirei, suspirei, emulando um prazer
silencioso do ar misturado ao ar. Meu corpo ganhava uma composição diferente,
menos sólida, o desejo vaporoso criava gotinhas na pele, estava salivando.
Amaria cada pelozinho do seu braço —
imaginei a voz dele sussurrando no meu ouvido.
O professor levantou-se de repente,
deixando-me perdida no ar. Não me mexi. Fiquei ali sentada, e tensa, segurando
a dor entre as pernas. Ele entrou e saiu do quarto. Trouxe uns livros, “leia”...
Ah, mais leitura, que excitante!, pensei desanimada. Assim passará a dor, literatura
cura tudo: dor de cotovelo, desespero e dor na periquita! Estava louco?
Ri, acho que ri com olhos estalados. Ele
estava nervoso, eu o deixava tenso?
Voltou ao quarto, dessa vez trouxe um album com fotos de viagens suas pela
Europa.
— Ai, que lindo! — exclamei. Paisagem, montanha, neve,
monumentos...
Eu não queria ser vulgar, mas fiquei
pensando: Onde está o monumento dele? Onde
está o Wally, professor?
Tomei outra taça de vinho, mas nem bêbada
ficava, era um choque permanecer sóbria diante de homem maduro que não sabe o
que fazer com uma ninfeta! Terminada a sessão de fotos, ele me puxou pelo braço
e sem jeito nos abraçamos. Agora sim, pensei. Ele beijou meu pescoço, “gosto do
seu perfume”, disse assim.
— Não uso nada, cheiro a pele — murmurei como se enfraquecesse. Sem
quase respirar.
— Gosto da sua carne então, do que ela
exala naturalmente...
Ai, a pontada da dor novamente. A respiração
dele colada na minha. Agarrei-o pela cintura. Gosto da sua barba malfeita,
pensei, mas não quis dizer, meus pensamentos sempre foram pedras preciosas, nem
todo mundo precisa saber o que penso, tampouco o homem precisa saber que o
desejo tanto, tanto...
Soltou-me. Estava suando. Gotas de
perturbação derretiam-lhe o semblante macio, agora ele me parecia transtornado
e um pouco louco. Olhava para um lado e para outro, sem me encarar, inquieto.
Um homem em completo desajuste! Meu Deus, onde vim me meter?, pensei ao me dar
conta de que já levava uma hora naquela incômoda sala de estar.
Fui até a janela. Acendi um cigarro, como era
bom fumar e ser brochante, pensei, pensei, pérolas raras. Soubesse ele quanto
tempo gastei imaginando esse dia... ah, que bobo! Abraçou-me por trás. Não me
queria perder? Virei-me e o encarei, ele
agora fumava comigo. Ficamos olhando o nada, a parede suja em frente, dividindo
a fumaça. Como parecia infantil, se não fossem as rugas no rosto lhe tomaria o
cigarro da boca, que menininho indefeso! Levou-me em seguida ao quarto. Nessa
hora, tive um ataque de esperança, e ele me sentiu vibrar; com um ímpeto feroz,
jogou-me na cama, como um trapo. Tirei os cabelos que me cobriam o rosto.
Tentei fazer cara de sexo, como assim?,
cara de ahn...
Ele me virou de costas, oh, como imaginei? Soltei um
riso de um canto a outro da boca, com pescoço esticado, som rouco de riso
abafado. Sentou-se em cima de mim, segurou-me o cabelo, como se eu fosse o
quê?! Que está fazendo?,
perguntei-me um pouco assustada. Ele deslizou as mãos pelas minhas costas,
massageando-as. Fiquei mais
tensa do que se tivesse visto um fantasma na minha frente. Não mexi um músculo
do corpo. Ao contrário do que imaginei, suas mãos eram pesadas — ele era um intelectual na rua e um operário
na cama. Que pavor! Virei-me, fiquei de frentre pra ele, me imaginei peituda
com a atriz da revista. Nada disse, evitei até falar com meus olhos profanos.
“Sabe segurar um olhar de desejo?” —
pensei e lembrei do poeta. Quem
não sabe, pois.
O homem não era de saber dessas coisas;
levantou-se da cama e voltou à sala. Eu me estiquei e ajeitei a blusa troncha,
tinha caído um botão, merda, antes valesse o prejuízo, mas não, pensei. Estava
inconsciente e um pouco tonta, aquilo tinha acontecido mesmo? Havia sido abusada ou o sexo com ele fora tão
metafísico que transcendi a realidade e agora via duendes mancos na minha
frente? Encontrei-o em pé no meio da
sala, numa angústia de cachorro que precisa fazer suas necessidades no jardim;
vou soltá-lo, ameacei. Não, melhor, me livro disso.
— Tenho que ir, está tarde e... —
eu disse, me cortando.
— Não, por favor.
Meus Deus, o professor, o homem, estava
ajoelhado diante de mim?
— Não vá, peço que fique —
implorou.
— Tenho mãe pra dar satisfação —
menti, minha mãe não estava nem
aí pra nada.
—Professor...
ai, desculpa, foi o costume. É que na verdade eu não devia ter esquecido que
você é meu professor e professores de
teoria literária não trep…
Foi o que adoraria ter dito, mas disse apenas
“professor”, como se o castigasse, e parei por aí. Você é meu professor, que quer de mim?, pensei olhando pra ele. O que desejei dizer
mesmo ficou guardado, até eu bater a porta daquele apartamento, minutos depois:
“... Fique aí com os personagens desses
livros todos que lê! Não lhe serviram pra nada! Agora, se quiser dar uma mesmo, leia aquele escritor...
Aquele livro me arrebentou, descobri outros prazeres da literatura”.
Ai, que estúpida sou, dezenove anos. Meus
pensamentos preciosos, lindos, todos guardados numa caixinha.
Olhei pra ele, pedi que se levantasse. Não
merecia saber o que se passava pela minha cabeça, não...
Dei um tchauzinho e bati a porta. A vizinha do apartamento ao lado, uma senhora com
cabelos fofos de algodão, acompanhou-me com um olhar duro até eu entrar no
elevador, como se me jogasse na cara: “uma menina nova dessa com um bunda mole
daqueles”.
Estava certa. Eu era muita teoria pra
qualquer aulinha dele...
Entrei no meu quarto e me joguei na cama com
roupa e sapatos. Quantos meses de conversas ao telefone, quantos meses pensando
nele, pra quê? Os homens são tão
infantis, não existe literatura que salve um homem sem preparo emocional! Rá
rá. A coisa me parecia tão simples.
Como operar uma máquina. Bastava lubrificar, esquentar e pô-la em ação! Sem
teoria!
Fiquei passando os canais na TV, não era
desse jeito que esperava terminar a noite de sábado. Fui até a geladeira,
peguei uma cenoura, salpiquei-lhe sal. Enfiei-a na boca, sem morder, chupando o
salgado. Depois dei várias mordidas, uma atrás da outra, sentia raiva! Mordia,
mordia, o sal entrava na pele ressecada dos meus lábios como um ácido, me
queimando. Mordi o último taco com tanto ódio que feri minha boca, e sangrava.
De repente, na boca senti o inesperado sabor
do sexo:
de arder,
sem dor.