O último sonho
Neva
ou chove lá fora? Acho que
chora.
É o vento puxando lágrimas dos Anjos.
Os Anjos cospem amor nas nossas cabeças?
“Quem está falando?”, perguntou a mulher, trêmula.
Acordou assustada, como era comum em noites estranhas e abafadas. Mas e as
vozes? Já não as ouvia. Vai chover, pensou, sentindo mais calor que medo.
Dormia sempre sob a tensão de que o marido um dia a sufocaria com as mãos
pesadas, no meio da noite. Ele tinha pesadelos horrorosos, de chacoalhar o
corpo todo. Falava, gritava, tinha visões.
Mas o marido não estava ao lado dela? Há
quanto tempo não estava? “Que lugar era aquele?”, perguntou-se angustiada,
alisando a pele seca do braço, debaixo do edredom. Não sabia exatamente se era
dia ou noite, talvez pelo fato de que nevasse lá fora, e a brancura da neve
deixasse o céu mais denso e azulado. Parecia estranho sentir calor em pleno
inverno, mas era isso o que sentia.
Acendeu o abajur na cabeceira ao lado da cama
branca. A luz fraca não lhe permitiu ver o interior da habitação. Reconhecia
aquele quarto, levava dias ali, repensou. Visitava algum familiar? E o Roberto?
“Ah, ele é de andar com o sono!”, disse de riso. Devia estar lá fora (está
nevando? e esse calor?!) fazendo bonecos de neve, pensou. Daqui a pouco vai
jogar uma bolinha de neve na minha janela.
Sentou-se com dificuldade na cama, tentando
alcançar o interruptor ao lado da porta. O corpo doía cada membro, os ossos
estalavam como se saíssem de dentro de uma caixinha. Gemeu. Que patético!
Acender a luz virou uma prova de resistência, ossos rangendo, pernas frouxas,
corpo pesado, pensou. Conseguiu, enfim, acender a luz, mas o quarto, abandonado
num silêncio de cortinas pesadas (o silêncio que tem pernas grossas de solidão,
como diria, poeticamente, o Roberto), continuava escuro.
Ao tentar levantar-se, tomou um susto que lhe
encheu o peito com uma batida reverberante. Um feixe de luz entrou pela brecha
da cortina, deixando-a cega por uns segundos. Piscou os olhos várias vezes e
viu um homem sair debaixo da cama. Não sentiu medo, nem gritou. O senhor
robusto e simpático arrastou-se pelo chão e subiu na cama. Sentou-se ao lado
dela e, ao vê-la a ponto de quase dizer algo, tapou-lhe a boca. “Não faça barulho!”, disse. “Não
devemos interromper o dia que nasce sempre trêmulo, com pernas bambas”. Falava
baixinho, de um jeito cantado, suspirante: “A responsabilidade do Dia é de aflição, imagine, cara mia, a responsabilidade de ser o dia — aquele que chega sempre cheio de
esperança no coração de todos os mortais... Quantas pessoas não conseguem nem
pregar os olhos com cola à espera dele?”, divagou o homem. “Dele?”, repetiu ela
como se não o acompanhasse. “Do Dia! e que venha pleno”, respondeu sorrindo,
como se falasse sobre algo tão óbvio!
Ela se tremeu, não acompanhava o pensamento
daquele senhor sorridente e com aspecto meio de velho louco e mendigo. O que
havia acontecido noite passada? “Shh”, ele apertou o gordo dedo indicador
contra seus lábios. “Não pense em nada!”, disse. Inclinou a cabeça e deu um
riso, quase cantou no ouvido dela: “Veja, daqui a pouco os pássaros anunciarão
o Dia, sinos tocarão em igrejas distantes...”. Tinha uma voz grave e bonita,
pensou ela. Seria um tenor? O quarto iluminou-se, em seguida, e pôde ela assim
ver seu rosto redondo de criança. O homem continuava sorrindo. Após mais uns
segundos, finalmente, quebrou-se o silêncio do Dia:
—
Buongiorno, cara mia! — disse ele e bateu palmas.
—
Giorno... Mas,
finalmente, quem é você?
—
Eu sou... um sonho... —
respondeu ele, sem querer fazer sentido.
Ela olhou para os lados, desconfiada.
— Roberto, é você, amore?
—
Guarda, io parlo italiano, mas posso falar qualquer idioma — gargalhou como se dissesse a coisa mais engraçada do
mundo. E continuou: — Nessa
situazione, a gente parla do jeito que deseja. Parla, pato! Fala, alga e amalgama. Sente, sonho é imaginação, la immaginazione é realidade. Benne, vamos ao que interessa! Aqui
estou eu para “dirigir” seu último sonho.
— Sonho? — perguntou ela assustada. Mas se estava acordada? Tinha certeza de
beliscar-se, não sonhava. Além disso, via a neve lá fora, e agora o frio
consumia sua carne sem piedade. Entrou debaixo do edredom, deixando apenas o
rosto magro de fora. O homem aproximou-se dela, ficaram cara a cara. Ela sentiu
mais frio, os lábios tremiam sem controle.
—
Do que, que, está fa-fa-
la-lan-do? — perguntou ela.
—
Che parlo io?
Pensei que já soubesse a que vim! — disse ele, surpreso. — E não estou falando nada, a linguagem
do sonho é lepêtipolá! Guarda, eu já
não tenho a prática de dirigir filmes como antes, mas a ideia de “conduzir” um
sonho me deixou realmente emocionado, e valeu a pena voltar a esse mundo por um
bom motivo.
—
Mas isso não faz sentido!
—
No, no. Não
faz mesmo. O mundo é a prova dos nove, que sentido há nisso? Noves fora...
Tirando nove, fica... — contava nos dedos gordos e macios. — Puff!, todas as vidas terminam do mesmo jeito!
A mulher concordou com a cabeça, sentiu-se “un po´triste”
e comum, velha e fraca. É que, tirado a prova dos nove, a vida terminava do
mesmo jeito para todos, não importava a nacionalidade, a cor, o dinheiro.
Talvez ela tivesse acabado de morrer? E os Anjos do céu chegariam em breve e a
levariam pelos braços — possuíam os Anjos um jeito especial de dar boas vindas aos sonhadores?
Sim, e o primeiro a chegar fora esse anjo meio palhaço que falava coisas sem
sentido, pensou ela tentando aquecer o corpo.
— Você é aquele diretor, não é? —
perguntou olhando no fundo dos olhos dele. Sim, o Roberto gostava muito dos seus filmes, lembrava a família dele...
O homem sorriu com os olhos fixos no chão.
Tinha a expressão pesada como se acabasse de escutar uma canção triste.
Bobagem, pensou ele em seguida, e, ao levantar o rosto, encarou-a com os olhos
arregalados de um boneco assustador.
—
Cara mia —
disse bem alto, causando-lhe um leve sobressalto. — Cara
mia, não podemos perder tempo! Já não tenho lá a prática pra escrever
roteiros, porém, podemos improvisar. A vida é de improviso, si? Che
bella la vita! Quando já não prestamos contas à vida, che bella! Bateu as mãos e disse, num estalo: — Começamos? Ah, claro!, antes de mais
nada: que personagem você quer ser, cara?
Ela inclinou a cabeça do mesmo jeito inocente
que as crianças fazem, para pensar um desejo:
— Eu quero ser um menino... um menino
que sabe voar.
— Che cosa?! Ah, un ragazzo — ficou pensativo. — Um menino que pode voar com uma
pipa amarrada à lua?!
— Pode ser — respondeu ela, com um
encanto meio louco no olhar.
— Algo mais?
—
Sim. Quero ser um menino
feliz... e desejo morrer menino.
Ele segurou-lhe a mão, pediu que fechasse os
olhos, ela o obedeceu. Barra berra birra borra burrO! “Ação!”, gritou. Ouviu-se
um ruído lá fora, como se tivessem jogado uma pedra na janela. A mulher
mantinha os olhos fechados, sob orientação do homem que tentava dirigir o sonho
através dos pensamentos. Aos poucos, ela imergiu no sono mais esquisito;
sentiu-se leve como pétalas de cravo branco, espalhando um perfume ameno pelo
ar; um perfume de alma, pensou com seus cravos, ouvindo vozes estrangeiras
pelos corredores e sentindo o hálito de éter da morte —
a morte que pulara pela janela
daquele quarto. De repente, mergulhou num silêncio de máquinas a contar
segundos, sua respiração artificial enfraquecia aos poucos; ouviu o zumbido de
uma abelha à procura da saída, “mas a janela está fechada, abelhinha”, murmurou
ela. Entrou na camada mais profunda do sono, nadando com barbatanas até
alcançar a superfície. E, ao alcançá-la, colocou a cabeça pra fora e viu-se ali
deitada na cama — como
podia ser duas ao mesmo tempo? Mergulhou novamente num rio de estórias,
incorporando o movimento do sonho e do tempo que lhe restava; no tempo, podia
tocar; ele feito de uma grande massa de quadrado:
tac tac tac tac
José tinha oito anos e pernas finas de
gafanhoto. Jogava bola na rua, mas a jogava tão alto que a perdia de vista; era
sempre de ter a cabeça na lua, não gostava de futebol e os amiguinhos o
chamavam de “Zé Marica”. Ele nem ligava, porque era doido só, com o riso
banguela, os dentes da frente separados de comerem vento; pastel de vento era
bão, se lambia. O dono da mercearia da esquina, também chamado Zé, e a mulher
gorda, dona Eulália, esperavam a visita do Zezinho todos os dias. Ele comprava
torta de leite condensado e bala de maçã, tudo doce de apertar os “oios”.
Açúcar enchia-lhe o coração dos olhos de lágrimas. Achava mais bonito ver o
pedaço de torta ali no prato que a comer, e, às vezes, dividia um troço com o
amiguinho, pois que não custava nada repartir o doce da vida.
Morava num bairro de velhos, em frente a uma
igreja. A vida então não tinha mistério, pois Deus morava ao lado de casa. Eram
vizinhos. E havia por Ele grande respeito. Zé se benzia cada vez que passava
por uma igreja, só por mania, não era de frequentar missa. Frequentava o humor
de Deus, que lhe abençoava com manhãs frescas e pão à mesa. A família do Zé era
pobre de pão, mas tinha fé na farinha e no feijão. As coisas chegavam com a
“Providência Divina”, pensava mas não
dizia a Vó, no canto do olho dela. E morar ao lado da casa de Deus, que
privilégio! Zé e o céu. “Que sorte de pobre eu tenho”, dizia.
O que o Zé menino gostava mesmo de fazer era
correr pelo estacionamento da igreja e, no final da missa, encontrar o doido —
porque doido adora uma missa! —, o doido Barba Vermelha, que lhe dava um medo
de gela pé e treme perna! Barba Vermelha era assim chamado por ser ruivo e
pálido com um irlandês. Usava sempre um chapéu feito com a “cuia” da lata de
queijo do Reino, aquele queijo caro que só aparecia em fatias, na geladeira, no
Natal. Andava apoiando-se num cabo de vassoura e assustava Zé, que o via como
um fantasma manco, “que horror de medo!”.
Agora vejam, a cena essa: o Barba Vermelha
passeando pela rua, toc toc toc. O pobre não perturbava ninguém, a loucura que
cometia era falar sozinho enquanto caminhava. Hoje em dia ninguém se espanta
mais com gente falando sozinha; já não somos loucos, falamos ao celular, com
mãos soltas, gesticulando! Mas Zé não podia ver o Barba, corria léguas; um dia
invadiu a casa da vizinha, que ralhou, “peste! deixe o pobre do Barba em paz!”
Mas ele nem era de mexer com doido, só de
mexer com as coisas do medo. Deu língua pra vizinha, que contou tudo pra mãe. A
mãe, que tinha o pensamento leve sobre as coisas, deu uma risada de bruxa solta e puxou-lhe a
orelha, depois disse: “Vá lavar o pinto, menino sujo! E desapareça do meu campo
de visão”. A mãe, que acordava cedinho pra varrer o carpete com os peitos grandes
de fora, e enchia Zé de raiva carinhosa, porque era ele a lembrança do
desaparecido marido; sabe-se lá que fim ele teve, que fim? Zé não o conhecera,
pai era uma imaginação na cabeça, como os santos coloridos da igreja; uma
imagem sagrada, a do pai do Zé. “E se o pai fosse o Barba que anda por aí
perdido?”, perguntou-se uma vez chutando pedra, e o pensamento foi longe. “A mãe
se agarrava à vassoura como se fosse um homem. E o Barba ao cabo da vassoura
como se não caísse de amor?”. Ah, Zé, Zé!, quanta bobagem!, batia na
cabeça.
Outra vez ouviu a cozinheira segredar com a
mãe: “o Zé sofre de medo medonho”. “Que
estória de medo...?”, perguntou a mãe. A cozinheira enxugou as mãos no
avental sujo, e, com olhos de querer bem, disse que viu a cara do moleque no
dia que o Barba veio pedir comida. “E por que do medo?”, a mãe, com suor na
testa mexendo a panela de feijão. “O Barba veio pedir comida e não entendi
coisa com coisa, quase num falava, é de soltar as palavras com o pouco fôlego
que lhe resta... pois que o coitado perdeu a puntuação”. “Pontuação?”, corrigiu a mãe do Zé, que era professora
de Português. “Sim, eu digo a linguagem que todos temos, porque se comunicar
com a fome até um macaco consegue, mas, no caso do Barba, não! É falta de puntuação, de quem já gastou as palavras
todas”. “Que sofrimento”, disse a mulher. E pensou no filho, mas criança era de
aumentar tudo o que via, e se bem conhecia o Zé que tinha em casa...! Esse
gostava de espiar a vida com uma lente desfocada. Não tinha tempo pra isso,
pensou, ela que chegara à estação da vida com uma bagagem de problemas, esse do
Zé não era nada! “Barba é desparafusado, e o Zé que coloque a frescura de
molho”, disse a mãe mexendo agora no passado.
Zé não era de se encucar, um menino de oito
anos não se “encaraminhola”, mas acumula um monte de coisa confusa que mais
tarde só o divã! É que de pequeno toda criança tem uma loucura sadia... Quando
crescesse e abandonasse o corpo de criança, ao Zé adulto restaria uma escolha:
tornar-se um Barba da vida ou esconder a loucura dentro dos sapatos apertados.
Não, existiriam outras escolhas: ser doido assumido, meio doido reprimido, ou
doidinho do pé dolorido. Sabe-se lá o que Zé faria com tudo isso, ele morreria
jovem! “Morreu de quê?”, perguntariam os fofoqueiros. De doidice! De ser
doidinho e alegre, ou de alegripe, uma doença contaminosa hoje em dia. Então,
dale!, as rezadeiras a chorarem sobre seu caixão, “ai, ai, do menino Zé, que
tinha alma de fava e pé de moleque”. Dos moleques mais doces que batata doce. E
a mãe varreria os pés de todos no velório, “sai, sai!”, com os peitos de fora.
Ai, ai, o menino Zezinho.
Mas que nada, ele estava no auge da infância,
com bola de gude, marrecos, carrinhos feitos de lata de azeite, garrafas de
plástico pra soltar pum, e botas ortopédicas pra chutar a canela da vó,
coitadinha, que ralhava: “menino peste amaldiçoado!”. Ele ria de flor
desabrochando, falava pouco e ria demais da conta, o Zé. Que não era lelé,
ninguém ousava chamá-lo assim. Sua doidice era um estilo de vida.
A vida de uma criança pode ser contada de
qualquer jeito, é uma delícia! Às vezes, Zé sonhava que tinha uma pipa amarrada
à meia lua e dá-lhe perna, subia a ladeira da rua ao lado da igreja, arrastando
a pipa que dançava no ar, feita de rabo de lagartixa. Mas eis que, naquele dia,
a lua enganchou no topo da árvore, e Zé, que tinha corpo de papel, magricela,
subiu com o vento do rabo de lagartixa. E lá ficou ele pendurado no alto da
árvore à espera de um socorro. Sem saber, Zé apressou a noite enganando o
dia...
Disso, sucedeu. O quê? O povo tinha mania de
colocar as cadeiras nas portas de casa, todas as noites, pra ver a rua passar,
pra amainar a alma... hábito que se perdeu com o tempo. Nesse dia, nada de
noite chegar. “Uai, cadê a lua?”, perguntavam de cabeça pro céu. “Achei,
achei”, gritava um mais esperto, peste! De longe avistavam uma meia lua, entre
nuvens e folhas, na última esquina da rua comprida. Nunca sentiram a lua tão
perto. “Uai, a lua tem cara de menino”, disse um menor, sem malícia de noites
de luar. “Deixe de ser besta”, respondeu a mãe abafada. É que tinha algo de
errado com a lua, todos já haviam percebido. Nem à missa prestavam atenção,
“que tensão braba!”, de coice o homem dava. Fazia calor de caldeirão fervendo.
E tinha algo de errado no tempero da noite. Amantes saíram em disparate,
desafivelando os cintos, revelando amores secretos; casais se esconderam em
carros abafados de ai, ui; as mais velhas se animaram um pouco de ar pra corar
a pele; maridos “acoxaram” as senhoras esposas, que derretiam a gordura do
amor.
“Mas que loucura, não está vendo que isso não
é lua cheia!”, gritou a mãe de Zé, atiçada as partes dela. “Lua deixa qualquer
um doido”, comentou a cozinheira que matava galinha no quintal de casa. Zé
passou boa parte da noite sentado na meia lua, Zé lua, que parecia uma cadeira
de balanço, contemplando o topo da igreja, a casa de Deus, quando mais perto
dos anjos havia chegado. Não tinha noção do perigo, doidinho puro, e começou a
se balançar de um lado pro outro, de um lado pro outro... até que a lua foi se
inclinando, o fogo dos amantes baixando... os esposos roncavam, o cachorro que
mordia o rabo lambia agora ferida... A lua virou de cabeça pra baixo, e Zé
escapou por pouco de rachar os dentes no chão, segurando-se na ponta dela, e lá
ficou com as pernas soltas no ar. A vizinha olhou pro céu e sentiu uma
avalanche subir pelas pernas e tomar-lhe conta do corpo, “Deus é mais!”. Desmaiou no meio da sala. “A lua está de
cabeça pra baixo!”, gritaram de algum canto. Dito isso, caiu um toró “brabo”,
de despertar as baratas anoitecidas, que saíam pelos buracos de solidão; a mãe
do Zé não perdeu tempo, sempre com a vassoura em mãos, pá pá pá a matar as
bichas cascudas e gosmentas. A mãe do Zé era uma bruxa, era?
Com a chuva forte, a lua foi escorregando,
desenganchou-se de um graveto, e a queda do menino foi amaciada por um poodle
medroso que se encolhia debaixo de uma nuvem negra. Ao chegar em casa, levou
uma cacetada com a vassoura da mãe que varria e matava baratas; de leve, não de
machucar, mas Zé chorou e disse meio assim: “Mãe de verdade é a mãe-lua”; a mãe, que se ofendeu com tamanha ousadia,
respondeu “era mesmo, pois não pari um moleque aluado”. E bate porta, e mata
barata e barrachuva, corre vento, e a vizinhança fechou as janelas pr’aquela
noite estranha.
Barba Vermelha tirou a cuia da cabeça e bebeu
água da chuva noite adentro, tomou sereno. No dia seguinte, bateu palma lá na
porta do Zé e dessa vez conseguiu arrotar uma palavra engasgada: “eu-comer”. A
cozinheira disse “já sei, num carece de dizer que cê quer, que seu estômago
fala pelo corpo todo”. O homem cheirava a desnutrição. “Tá aqui um prato de
arroz, feijão e carne”. Barba aguardou todo tempo sentado no batente do portão
da casa. A casa era toda aberta e comprida. Zé comia em silêncio, na cozinha,
mordido de medo, era o Barba comendo aos pés da casa. Mas achava bonito isso da
mãe “avassourada”, que sempre oferecia aos outros o pouco que tinha. Outro dia
convidou dois meninos de rua, famintos, a sentarem-se à mesa com eles. Tomaram
sopa de batata e macarrão, uma mistura de deixar saco vazio em pé durante dois
dias. Os meninos comeram com uma fome de cem anos sem comida, Zé, de tanto
vê-los padecer de alívio, mordeu a colher e quase quebrou os dentes.
“Zé”, disse uma vez a si mesmo, em frente ao
espelho; Zé, um nome tão simples, ele só podia ser um menino feliz, pois coisa
mais simples que a felicidade? Só feijão com arroz. Ah, e bolacha d’água. A
rotina sua era das mais comuns, mas de uma fantasia atrás das cortinas. Era
doce ser o menino Zé que brincava com meninas e meninos, sem distinção.
Corre-corre e pega-pega, pra ele não havia gêneros, as pessoas eram plantas.
Passou a chamar o namorado barrigudo da mãe assim: Folha. E ele não se
incomodava, tinha cara de folha seca. O rosto do pai devia ser alguma vegetação
atípica, pensou, que não se nutria por aquelas bandas.
Raras vezes, Zé chorava no quarto aborrecido
com a impaciência da mãe, ou morto de tédio: quando chovia, não tinha nada pra
fazer a não ser pingar chuva em aquário. A casa estreitava, abafada. Um dia Zé
fechou os olhos e achou que não voltaria ao mundo real. E não é de pensar, às
vezes? Entrou no mistério da vida tão grande, arrebentando o cadeado de uma
porta de madeira. Correu por um túnel úmido cheio de ratos amigos e todos
prosa. Tinha até rato cantador e pé de valsa. Lá fora — no mundo real — ouviam-se as vassouradas da mãe,
cháp, cháp, no carpete, às sete da manhã; o sino tocando, o barulho das
pessoas, a cozinheira a esganiçar galinhas com o canto da morte. A vida no
submundo era de saber por que se vivia; o que fazia ali, homem das cavernas?
Sabia como acabar com a fome e com a sede. Bastava. Hoje em dia ninguém sabe
nem se tem vontade!
Foi
nessa época que o namorado da mãe passou a morar com eles. Zé via o rosto de
uma “planta” na montagem de um rosto de pai, que nunca soube. A casa, que já
era pequena, ficou do tamanho de um amendoim. Da caverna, não sairia nunca
mais, pensou. Zé mijava nas calças, espantava-se com a simplicidade das coisas.
Dava vontade, pronto! O mundo passou a existir dentro dele, imaginem o mundo
inteiro! Mas inteiro era a memória da
rua, até os limites da casa de Deus, até os limites da “puntuação” do Barba,
que passou a dizer “Barba vive Vermelha”. Tinha vida demais, o doido, como o Zé
também, doidinho.
Soube-se, depois de um murmúrio de lavadeira
no quintal do vizinho, que havia um outro doido frequentando a igreja, e esse
adorava casamentos, não perdia uma cerimônia! Um dia entrou na igreja vazia —
era casamento de pobre — e sentou-se ao lado da daminha, uma
menina de cinco anos. Comia mamão quente, tinha a cara espatifada de laranja
madura. Olhou pro padre, pro casal, e, ao ver o vestido branco da daminha, não
resistiu e sujou-o com mamão. Riu e se empapou de amém.
Zé se arrependeu de uma coisa na vida: de não
ter subido com a pipa de lua pro mais alto do céu e agarrado nos pés de um anjo
mendigo que lhe acalmasse o sofrimento, por saber sofrer também. Mas já estava
ali dentro num abrigo seguro. A vida lá fora continuava igual, a rua comprida,
as vizinhas com tré lé lé de estórias — tudo invenção pro mundo ficar menos
chato. Seu Zé do bolo vendendo doçuras —
“quer enganar quem vendendo vida de caramelo quê, Seu Zé?!” —, os moleques de rua a chutar um
destino, não era mais que isso não...
O primeiro e longo suspiro do Zé: descobriu
que a mãe estava grávida e mais uma vez abandonada; ele chorou de dar nó no
cabelo encaracolado. Passou a ser triste, era mais um Zé ninguém nesse mundo,
poxavida! A mãe teve uma menina e a cuidava com zelo, toda a atenção voltada
pra irmãzinha. Zé já tinha dez anos, se sentia um homem feito. A estória de um
homem acabava na infância, o resto era narração e encher linguiça. A mãe cada
vez mais ocupada pra sustentar as crias, já nem varria mais a casa com gosto, varria
Zé pras beiradas da vida.
Fine.
—
Que bonito, foi muito bom criar
imagens de uma nova infância — disse ela, com olhos abertos, como se
saísse de um transe.
— Não se pareceu muito com um filme,
mas sim com uma estória cheia de colagens.
—
Eu não morri menino no final...
—
Eu deixei o finale em aberto, prefiro assim.
—
Bom, me pareceu um relato
sincero e me deu a oportunidade de me meter no meio. Foi como ganhar minha voz
de novo, que se perdeu na voz dessa outra língua.
—
Si. Guarde, me diga uma coisa: por que escolheu
ser um menino?
Ela deu um suspiro, a pergunta já era de se
esperar. — Porque
a mãe achava que, pelo formato da barriga, ia ser menino, coisa de interior. O
povo dizia que, pela barriga, pela cara cheia de espinha... A pobre era nova e
cheia de hormônios, só isso — disse e fez uma pausa. Ela queria um filho que se
parecesse com o pai, que foi o amor da vida. Mas eu nasci parecida com sei lá o
quê. Enfim, o pai se chamava José, e eu fui o Zé que ela nunca teve... meu nome
é Josefina. Depois ela se juntou com o Folha e teve outra menina, de raiva,
“outra mulher no mundo!”. Botou o nome dela de Esperança. Achei um nome bonito.
—
E por que a raiva de mulher?
—
Era filha de índia. A mãe dela
subiu na árvore para esconder-se, e o homem branco acabou encontrando-a: “quero
aquela ali”, disse, e se casaram. A mãe dizia que mulher não tem escolha na
vida, mas um homem sim, porque tem a “trouxa” entre as pernas.
Ele deu um riso que entendia. Ficaram um
instante em silêncio. Pra que tivessem um pouco de sossego. As lembranças
tiravam o fôlego e já lhe era difícil respirar. Notou, para sua surpresa, que
falava todo o tempo sem nenhum cabo conectado às veias. As máquinas haviam
sumido do quarto. Não havia sinal de enfermeiras e visitas.
—
Eu não vi mais a mãe depois que
me casei com o Roberto e viemos morar aqui... por sinal, onde está esse ragazzo de quase oitenta anos?
—
Ah, o Roberto! — disse o
homem e pensou: “ele está à sua
espera”.
—
Você o conhece?
Ele riu novamente. Difícil saber o que pensava
quando respondia com aquele sorriso.
—
Va benne...
Estou fora de forma pois que me foi difícil filmar esse sonho!
—
Mas não foi um sonho, foi um
último desejo? Uma reconciliação com o passado? — disse e ficou
pensativa. Depois de um minuto, perguntou, com receio: — Caro, me
diga uma coisa, como é a vida do outro lado?
—
A vida do outro lado? — repetiu ele, e dessa vez ficou sério. —
É um filme que pode começar pelo
meio, em preto e branco, em cores... é um filme que não tem fim.
A mulher riu no silêncio do quarto
hospitalar. Nevava forte lá fora. Sentiu as mãos do Roberto tocando-lhe. O
escuro. Fechou os olhos de menino, e balbuciou num último suspiro: — Um filme... assim pra sempre...